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Outra coisa maravilhosa que você aprende do brasileiro é que se você cantar assim com toda sinceridade Oceano do Djavan dentro do ouvido vários deles e delas vão e transam contigo.

Aquele momento no litoral do Ceará foi um choque muito bruto pra mim. Mesmo com a morte da minha mãe, em parte por causa dela, acho que eu não tinha até ali um senso da realidade assim dos mais agudo. Ainda não tenho, mas tinha menos ainda quando eu era mais moleque. Isso não quer dizer que eu fosse um desses avoado que anda olhando pro céu e cai no buraco, sei lá, ou nerd que vive lá só nas coordenadas da Terra Média e da Marvel e não consegue manejar gente feita de carne. Não é que eu não fosse prático. Eu aprendi cedo a me virar, por questão de precisão, mesmo. Me põe numa treta que eu tenha algum espaço de manobra que eu me desenrolo, me põe diante de uma figura de autoridade cujo modis operandi não seja só quebrar neguinho que eu sei me dobrar pra dobrar ela direitinho. Me põe diante de qualquer pessoa que em cinco minuto ou menos eu já meio que sou ela, também, já sei onde que ficam as junta e as dobradiça dela, onde que ela cede e onde que ela é dura, onde que tem medo e onde que ela cava pra dentro de tesão. Nisso não tem ninguém mais realista que eu. As pessoas são transparentes pra mim desde os meus treze ou quatorze, quando eu comecei a entender de verdade o quê que era o sexo, o avesso da morte, a fome de tudo e o tanto que os dois deixavam todo mundo repuxado dum jeito próprio. Cu e boca todo mundo tem, já dizia o poeta.

Eu sempre tive umas intimação meio mística, né, que quando eu era mais moleque puxava pro cristão, porque minha mãe e meu pai e todo mundo que eu conhecia era cristão, só cristo que era coisa de gente. Quando eu comecei a beber mais pesado, lá pros dezesseis, só depois de sair de casa, era fácil-fácil que alguma coisa me pegasse e eu achasse que era Deus falando comigo. Era muito fácil. Batia uma coincidência qualquer do rádio e do que tava passando na rua e eu já ficava todo rebuliçado, suspeito, olhando pros lado achando que era pegadinha. Eu achava e não achava que era ao mesmo tempo. Ou melhor: eu sabia. Que era e que não era.

Desde que eu deixei de ser católico eu sempre escolhia um ídolo pra amar e querer devorar, até gastar a paixão e trocar por outro. Primeiro foi o Kurt Cobain, mas o show dele foi ruim, eu só vi um menino magricelo e triste sendo amplificado por uma estrutura demoníaca e monstruosa, enquanto um bando de moleque cheio de hormônio gritava em volta. Eu ainda acreditava em Deus, ou algo parecido, e aquela energia de devoção ficava procurando um veículo novo em tudo que brotava.

Lembro da hora exata em que essa energia se transfigurou, virou outra coisa. Foi na casa da Vila Kosmos em que eu morei por um tempo com uns moleques, um deles meu primo Kléber, meu único contato no Rio quando eu cheguei. Falou que eu podia ficar uma semana com ele, quando liguei, já em Salvador. Acabei ficando dois meses. Só tinha visto ele antes duas vezes na vida, quando ele foi pro Piauí com a mãe dele nas férias. Gente finíssima. O primeiro doidão que entrou na minha vida, na época mostrando fitas k7 de Raul Seixas e de metal. Quando nos encontramos no Rio, no endereço que ele tinha me passado, ele tava com um cabelão liso, de extensão parecida à da minha na época crescente juba encaracolada. Andava de skate e trabalhava de office boy três dias por semana num escritório de alguém que conhecia a mãe dele. Me botou meu primeiro beque, benzadeusas. Tava morando há pouco tempo nessa casa abandonada com Mateus e Denílson, vulgo “Sardinha”. Tinha dois andares, mas o segundo tava todo destruído, o teto vazado, cheio de mofo e morcego morando. Primeiro me falaram que era da família de um deles, o Mateus, depois falaram que tinham invadido. Depois fui entender que as duas coisas eram verdade. A casa tava presa num inventário interminável da vó do Mateus tinha oito anos, já, sem sinal de resolução no horizonte. Tinham limpado um dos quartos direitinho e dividiam ele. Na sala só fizeram estender uma lona azul, em cima das tranqueiras todas, madeira com prego e poeira pra dar com pau. Ficava todo mundo sentado ou deitado em cima dessa lona, com almofadas emboloradas e fedidas, fumando um e ouvindo os discos que o Sardinha botava. Eles diziam que levavam mulheres lá, mas nunca vi acontecer. Já tinha CD nessa época e por isso já se comprava vinil velho baratinho na rua pelo Centro. O Sardinha comprava qualquer um que tivesse a capa “bem louca”, segundo o juízo dele próprio. Nessa a gente escutou Secos e Molhados, Divina Comédia, Todos os Olhos, Deus e o Diabo na Terra do Sol. Quando ele chegou com Araçá Azul me zoou falando que era eu no disco ou então era meu pai. O pior era que parecia mesmo, um pouco, e pior ainda era que nas fotos de dentro parecia ainda mais. Eu achei ruim, o cara não era exatamente um galã, mas ri junto, tava ali de favor, afinal. Eu nunca tinha ouvido Caetano, única memória que eu tinha dele era do meu pai desligando a TV, assim que ele apareceu, falando “esse aí só não é mais viado porque não cabe”. Aí começou o disco. Os moleques tavam tudo chapado e só ficavam rindo de tudo, mas eu vi que aquele homem era doido de verdade, que nem eu. E pela exata primeira vez na minha vida me ocorreu então que dava. Apesar de tudo. Dava pra ser assim.

A copa de 94 eu interpretei toda segundo uns prenúncios que eu fui ajambrando ali enquanto ela acontecia, duns pedaços de jornal e revista velho, mas daquele ano ainda, que eu achei na rua dentro dum saco plástico azul, um dia, na xepa da feira da praça XV. Levava pro bar onde os moleque tudo tavam assistindo e ficava juntando com o dedo os pedaços de frente pro jogo. Às vezes eu quase que nem via o jogo, só ficava acompanhando e tentando imitar as reações dramáticas de quem tava ali, gritando com um atraso. Depois de prever com sucesso a nossa vitória, a consagração de Romário, Deus-menino da Grande Área, em PLENO solo do Império norte-americano, a casa da Besta-Fera ela própria e a desmoralização do falso pretendente Roberto Baggio, em toda sua canastrice italiana e ilegitimidade imperialista, eu comecei a achar de fato que eu não só conseguia ler a fazenda mística do cosmos, nas suas tessitura entranhada, mas que haviam relações assustadoras entre o que eu fazia (o que acontecia com meu corpo) e o que acontecia com o Brasil no mundo dos fatos e eventos (que pra mim tinham seu veículo expressivo mais sintético na época o Jornal Nacional, na voz retumbante e bíblica de Cid Moreira).

Ficava com febre e achava que tinha a ver com a inflação (mas não sabia se era a minha febre que causava a inflação ou se era a inflação que causava a febre). Eu comecei a sentir muita, mas muita mesmo, responsabilidade. Mas eu também no fundo não falava nada disso em voz alta, não levava nem um pouco a sério aquelas doiduras até conhecer os menino e o Dennis lá em Belém, quase dez anos depois.

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