30.

Desde molequinho até homem feito (se é que ele estava, de fato, feito) a introversão de Murilo era iluminada pela televisão, por histórias em quadrinhos, por livros e pelo seu Gameboy. Música era bacana, mas emocionalmente pra ele um troço meio neutro, como se escutada sempre debaixo d’água. Tanto sua caixa de som quanto seu fone de ouvido não eram dos melhores. Tinha isso. 

Esportes e interação humana ao vivo de qualquer ordem eram só males a serem evitados e contornados da melhor forma possível. Já o Gameboy foi um videogame de bolso ganhado da avó paterna de natal, depois de uma viagem sua para os EUA. Foi o único videogame que ele teve. Ele manuseou aquele objeto por anos, alugando fitas na Super Games da 106, duas vezes por mês, tentando exauri-las em poucos dias. Ele veio com um cartucho contendo o jogo original do Pokémon, na sua versão azul. Sem nenhuma dúvida o evento mais importante da sua vida até então. Nele, Murilo controlava um garotinho que ele havia nomeado “GUTO”, fazendo-o desbravar diversas terras e cidades e aprisionar monstros em bolas tecnológicas para fazê-los lutar com os monstros de outros garotos e garotas. A estrutura do jogo era tão viciante que ele chegava a imaginar que a sua vida acontecia de fato ali dentro daquela telinha pequena cinza-e-verde, naquelas figuras, nos vetores de poder entre as criaturas que ele sentia como tão importantes, urgindo naquela trilha sonora épica de poucos bits com uma gravidade que era demonstravelmente real. Poderes de água contra fogo, pedra contra água, nas mãos de uma criança.

E era ainda mais forte o fato de que ele podia carregar o Gameboy para onde ele fosse, guardá-lo com segurança na mochila e recuperar aquele mundo exatamente de onde ele o havia deixado, como aprendeu a fazer mais tarde com um romance. Uma continuidade que se carrega por aí como um pequeno tijolo e que parecia constituir um mundo efetivo, quando sustentado, tão válido quanto o seu próprio (em si tão ralinho, tão escasso).

       Murilo quando mais velho, lá pros dezesseis, tornou-se conhecido na gibiteca pública da 508 por sua erudição em quadrinhos. A moça bibliotecária que cuidava do espaço sozinha tinha um cabelo desregrado e óculos grossos, um pouco dada a falar sozinha. Elaine. Murilo gostava muito dela, mas não sabia como comunicar isso. Ela tratava todo mundo com uma rispidez exasperada que com o tempo você percebia que tinha um fundo de atenção e mesmo cuidado que não sabia se expressar de outro modo.

       Tinha feito seu próprio sistema de catalogação dos quadrinhos (um acervo não tão grande assim, afinal) constituído de tabletes de madeira pesados e difíceis de serem manuseados, duma proveniência inteiramente destacada daquele contexto, talhados com motivos marítimos e tropicais em relevo, todos relacionados à cidade de Salvador.

Não era raro que moleques de quatorze a vinte e poucos anos viessem respeitosamente perguntar alguma coisa a Murilo, às vezes direcionados por Elaine. Qual que era daquele cara que  tinha um ponto de interrogação no rosto? O que tinha acontecido com o primeiro Lanterna Verde? O que acontece na edição que tá faltando aqui do Watchmen?

A sua introversão endureceu com os anos, concentrada como uma redução. Ele respondia com voz amável, sem olhar para a pessoa. Tinha vozes e personagens dentro da sua cabeça com as quais montava pequenos cenários retóricos, trechos de conversas e discussões pontuais a respeito de pequenos eventos da sua vida (o tanto que a sua professora de português parecia incompreender grosseiramente as tirinhas do Calvin que ela passava na sala de aula, os motivos possíveis para a cantina só ter enroladinho de salsicha de vez em quando, e não todo dia).

Cada vez mais se acostumava com o fato de que o mundo acontecia ali dentro da sua cabeça, remontado a partir dos filmes, livros, seriados e jogos que consumia no seu quarto. Aquilo que era o mundo, e não essa cidade que ele mal enxergava de dentro do carro da mãe ou a sala de aula de ensino médio que sumia enquanto ele lia. Não tinha amigos de carne e osso desde a puberdade e cada vez mais não falava com seus familiares. Eram muito frequentes os sonhos onde de alguma forma ele descobria que na verdade vivia em alguma outra realidade a qual tinha acesso frequente, aquela vida estranha e modorrenta no quarto mofado sendo apenas uma versão pálida e não tão importante assim da realidade, dentre tantas, não mais verdadeira do que sua vida como curador de uma pequena galeria em Oslo, ou como uma filóloga latina em Pequim.