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Amanda viu o Renato pela primeira vez num curso que ela tava fazendo sobre Deleuze e arte contemporânea. Ele tava vestido diferente de todo mundo, sempre numa mesma camisa mulambenta estampada com a cara do Roberto Carlos circa 1978, que ela achava linda, e um shortinho amarelo bem curto. Sentava sempre no fundo, Amanda geralmente chegava atrasada e sentava na frente. Ela demorou duas aulas pra notar que a perna direita dele terminava no joelho e tinha uma prótese cor-de-pele (de pele mais clara que a dele) que ele deixava dobrada debaixo da cadeira e recolocava no final da aula. Levava pra aula só um caderno sem capa, no qual escrevia furiosamente o tempo quase todo. Ficava rindo pra si mesmo durante a maior parte das aulas e só foi falar alguma coisa lá pra terceira.

O curso era informal, não dava certificado nem nada, mantido numa casa de cultura alternativa onde também acontecia um bando de evento de discussão política com nome pretensioso e gente que se levava muito a sério. Não era nada barato. Ela tinha conhecido o professor quando ainda cursava artes plásticas na FAAP, antes de largar por perder o segundo semestre seguido por falta. Tinha sido das pouquíssimas coisas, além da Bárbara, que ela tinha gostado no curso, que no mais só tinha um bando de playboy barbudo pretensioso e menina mimada fazendo cara de esperta (como ela mesma, claro, ela sabia).

O professor tinha uma expressão de espanto constante, um cabelo prateado farto e esvoaçante e um hábito de ficar fazendo mímicas incompreensíveis pra tudo que ele não conseguia explicar, além de ficar sempre desenhando espirais no quadro enquanto descrevia a profundidade de alguma coisa em francês. Ela alternava o tempo inteiro entre achar ele interessante e boçal. Uma frase muito boa era quase sempre sucedida de uma muito ruim e vice versa.

Ela nunca conseguia fazer as leituras direito. Embora gostasse de algumas coisas, sentia que não estava entendendo coisa alguma e a explicação do professor quase nunca ajudava.

Na verdade, as únicas horas em que Amanda sentia que conseguia entender qualquer coisa de verdade era quando o tal do Renato falava alguma coisa.

Tudo que o professor descrevia no vocabulário difícil dos franceses o Renato traduzia em palavras curtas, ancorando e ajudando Amanda no processo. Dizendo que o que era real era um fluxo e uma quebra, fluxos e quebras. De sangue, de urina, de capital. Ele conseguia fazer com que aquilo que soava tão distante ganhasse vida na sua frente. Um dia no final da aula ela perguntou quem que era o doido da camisa do Roberto Carlos.

– Esse aí é o Renato, me apareceu um dia numa palestra minha e praticamente me deu uma aula, menino muito bom, meio maluco. Acho que é ex-presidiário, um moleque assim da correria, né? Ele não tem condição de pagar, mas eu achei que engrandecia o curso, cê não acha?

Naquele mesmo dia Amanda foi beber com (seu amigo mais próximo) Pedro e a (sua ex-amiga mais próxima e hoje namorada) Bárbara na praça Roosevelt. Renato tava lá fumando na calçada. Parecia mudar de grupo a todo tempo, uma hora falando com os skatistas, depois com uma gente de teatro de rua que tava pedindo colaboração do povo bebendo, depois com o fofão da Augusta, o morador de rua que vivia pelos salões de beleza durante o dia e na praça de noite, cujo rosto parecia um composto complexo de várias camadas derramadas de operação plástica, uma figura com quem o Pedro era obcecado, mas nunca tinha coragem de conversar. O fato dele transitar entre todo mundo com uma mesma naturalidade carinhosa impressionou Amanda. No meio da noite ele passou pela mesa deles com uma piscadela e ela convidou ele pra sentar junto, sem imaginar que aquele convite mudaria o resto da sua vida, assim como de todos sentados naquela mesa.

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