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Murilo foi um adolescente esquisito, cabeçudo e tímido, dado a mastigar agressivamente o interior da sua bochecha e ficar parado no canto pensando ou lendo de uma forma que convidava os outros a achar que ele havia tido um troço. 

Dos quatorze aos dezessete anos ele teve fincado bem no centro da sua cabeça o fato de nunca ter beijado ninguém e nunca nem ter passado muito perto. Pensava nisso durante boa parte do tempo que gastava na escola, que era boa parte da sua atenção desperta. Ele estudou dos seis até os nove em uma escola privada perto de casa. Mas teve que mudar para uma pública depois dos dez, os pais não disseram o motivo e ele nunca perguntou. E ainda aconteceu de Murilo fazer um teste e ser adiantado um ano. Chegou na escola nova sendo de longe a menor pessoa na sala, virou logo um mascote infantilizado que os colegas alternavam entre adular e humilhar. Ele mesmo quase nunca conseguia distinguir os dois atos. Todos, desde os mais extrovertidos e populares até boa parte daqueles mais tímidos de quem ele era mais amigo, logo se viram metidos naquela interação histérica de pequenos namoros e ficadas e escândalos e corações partidos.

Murilo simplesmente não entrava nesse mundo, não participava nem da forma vicária dos moleques tarados, solitários e introvertidos, como muitos. Havia várias outras formas através das quais ele não conseguia participar dos índices de normalidade do mundo, mas aquele ali era o que mais lhe constrangia. Não ajudava nem um pouco que ele tivesse sido adiantado aquele ano, tornando sua estranheza mais infantilizada e ainda mais distante dos outros.

Era como se ele vivesse fora daquelas coordenadas, daqueles termos. Foi a partir dos doze, quando as conversas dos meninos que sentavam perto dele, no fundo, começaram a girar em torno de sexo, que ele percebeu o quanto ele era diferente de todo mundo.

O tanto que aquilo era difícil de entender lhe incomodava, ao ponto que aos poucos começou a se tornar, digamos, o fato operativo mais importante da sua vida, aquilo que servia de índice para maior parte de suas experiências. O tesão e a sua falta.

A preocupação era sempre meio abstrata, porque ele nunca de fato encontrava alguém que o interessasse concretamente, nunca se sentia atraído de verdade pela figura de nenhuma garota. Ele tentou convencer a si mesmo de que gostava de uma menina chamada Ana Luíza, mas ele mal conseguia lembrar o rosto dela à noite, quando ia dormir e tentava montar alguma pequena narrativa satisfatória onde os dois se envolviam e as pessoas todas descobriam assim que acontecia, tomando nota de diversas maneiras (meninos da sua sala o encarando de longe com expressões mudas de respeito).

Ele nem chegava a entender exatamente como que o desejo sexual se apresentava, com que peças que aquela coisa tão poderosa se montava (e achava que devia ser apenas questão de tempo até participar daquele mundo, talvez até um troço hormonal qualquer, mas os anos se passaram e nada). Tentava simulá-lo com imagens que ele tirava da televisão e do computador, de excitação esportiva e sexualidade vaga de comerciais de perfume, mas sem muito sucesso. Imagens explicitamente pornográficas eram cômicas demais pra que ele sequer tentasse (ele só pensava em glândulas e ímpetos evolutivos quando via um pênis ou uma vagina).

Murilo viveu por anos agoniado com a perspectiva de alguém perguntá-lo se ele já tinha ficado com alguém. Isso só aconteceu de fato duas vezes. Numa delas ele simplesmente não respondeu, virou as costas e foi embora, o que foi claramente a pior maneira de lidar com a situação, pela hilaridade histérica que ela causou, e na segunda ele mentiu, disse que tinha uma namorada no interior de Minas, de onde era a família de seu pai. Fabíola (Fabíola?, ele não sabe deonde veio esse nome, talvez daquela skatista famosa).

Depois de responder do mesmo jeito três vezes, Murilo achou que seria uma boa ideia dar um pouco mais de substância para a sua mentira, encorpá-la um pouco mais.

Fabíola era um ano mais velha que ele, morena e usava aparelho, era tímida e muito engraçada com as pessoas mais próximas. Gostava de SKA e daquele seriado da menina que caça vampiros.

Ele enumerava as qualidades dela, a trajetória narrativa da sua vida (um pai alcóolatra, uma mãe distante que passa a madrugada comprando aquelas bijuterias horríveis que vendem na televisão, as várias mudanças que a família tem que fazer por causa do posto militar do pai, as incipientes preocupações políticas feministas e esquerdistas que a faziam bravamente confrontar sua família conservadora durante o jantar, jogando pratos de carne na parede).

Assim que a febre do Orkut se tornou inescapável, incluindo exatamente todas as pessoas da sala Murilo, ele percebeu que precisava criar um perfil para a Fabíola para dar mais substância para o troço. Ele se divertiu muito em montar a personalidade pública dela, colocar as comunidades, as bandas preferidas e orientações idiossincráticas de todo tipo (e ele levava inteiramente a sério a decisão de, por exemplo, fazer Fabíola gostar de novela ou não, demorava-se em questões desse tipo às vezes por minutos).

A princípio seria um problema a falta de amigos de Governador Valadares, sua suposta cidade natal, mas logo Murilo percebeu que adicionando dezenas de pessoas aleatórias da cidade quase metade delas aceitavam o requerimento de amizade, talvez com medo de não estar lembrando de quem era ou por não se importar de ter um estranho na rede de amigos.

Em poucos dias o perfil da Fabíola era absolutamente indistinguível de um perfil genuíno  de uma menina de dezoito anos de verdade. Ela era apenas um tanto mais retraído do que a média. A maior dificuldade, naturalmente, estava em obter pelo menos uma foto convincente. Claro que existiam algumas pessoas cujos perfis não incluíam fotos de si mesmas, mas essa não era a regra, e Murilo queria fazer um perfil que não parecesse estranho de forma alguma, que não se destacasse na multidão. A solução foi garimpar diligentemente a internet atrás de alguma foto de uma menina daquela faixa etária que aparentemente tivesse as mesmas inclinações vagamente alternativas dela, não fosse nem bonita nem feia demais e aparentasse ser brasileira (a princípio ele preferiria não obter uma foto de uma brasileira de fato, por aumentar as chances de algum conhecido dela cruzar com o seu perfil no Orkut). A foto que ele encontrou era de uma estudante catalã de vinte anos (que aparentava no máximo dezessete) que manteve um blog sobre fotografia por alguns meses em 2001.

Logo depois de botar o perfil online ele tinha pelo menos duas vezes por semana pesadelos onde a sua farsa era desmascarada num evento gigantesco e televisionado, na frente não só de todas as pessoas que ele conhecia, mas também (por algum motivo) do Romário e do Bill Clinton, que comentavam um no ouvido do outro e riam por muito tempo, trocando high-fives depois com as duas mãos.

Menos frequentes do que esses pesadelos, mas igualmente marcantes, eram os sonhos onde a Fabíola de algum modo se revelava verdadeira, aparecia um dia na sua casa de carne e osso e parecia brava com alguma coisa, com a sua própria existência desnecessária, talvez, ou com a audácia dele de sair criando pessoinhas por aí como se não fosse nada demais.

Ele pedia repetidas desculpas pra ela antes dos dois entrarem num carro conversível e dirigirem até o horizonte (esta cena já se passando, pelo que ele consegue lembrar, em terceira pessoa, saxofone no fundo, imagens coloridas demais). Durante a época em que ele de fato manejava a conta, acessando todo dia e respondendo de forma discreta e crível a pequenos estímulo, sempre acontecia um momento curioso de acordar e todo dia no meio do café da manhã super sonolento, de olhos ainda meio fechados, de repente lembrar que ele tinha aquela vida para cuidar, aquela continuidade que ele tinha que respeitar. Era um sentimento principalmente bom, só levemente pressuroso. Antes de dormir, também, por umas duas semanas, ele chegava a se preocupar de fato com aquela pessoa que ele tinha botado no mundo, com sua figura aí ribombando adiante, como se aquela fosse uma tremenda responsabilidade que ele não tivesse assumido ainda devidamente.

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