27.

Semanas depois da reunião com Silvinho, Nílson foi informado de véspera pelo chefe que iria para o Rio de Janeiro. Chegando lá, numa manhã quente de março de 2014, foi informado pelo jovem que o recebeu no aeroporto que deveria encontrar na piscina do Copacabana Palace um homem “excepcionalmente branco de quarenta e poucos anos, olho bem azul, magro, roupão também azul”.

Já ficou irritado com a descrição, considerando o contexto todo. Tanto o jovem que o recebeu quanto o seu contato eram parte do destacamento enorme norte-americano de inteligência que tinha desembarcado meses antes da Copa para tratar da segurança de toda a delegação. Tudo azeitado diplomaticamente antes, embora tenham chegado, sem explicar, com o dobro de agentes que haviam requisitado. Silvinho, que amava os ianques, mas também suspeitava de todo mundo, dizia que deixar inteligência estrangeira entrar significa não saber nunca se eles saíram ou não. Estavam lidando diretamente com as autoridades locais de cada jogo, mas haviam requisitado também encontrar com Nílson, especificamente. Quando disseram que ele estava à disposição em Brasília, foram informados de que no Rio seria mais eficiente e que eles pagariam a passagem. A pessoa que entrou em contato fazia questão de não dizer o próprio nome. Nílson ficou puto com a arrogância e a desconfiança, mas em parte estava feliz de ter sido chamado. Todo mundo no escritório tinha ficado perplexo, ninguém levava ele muito a sério, em parte porque todos sabiam que ele tinha sido pego no trabalho jogando (na verdade, constataram pelo monitoramento interno que ele tinha usado a máquina do trabalho para jogar CABOL por quase duzentas horas nos seus primeiros meses de trabalho).

Pelo que conseguiu entender, os gringos estavam interessados no Renato, como se achassem que ele precisava de um acompanhamento específico da inteligência anti-terrorismo. Isto soava ridículo para Nílson, mas ele não disse nada para seus superiores. Era melhor que achassem, por enquanto, que ele estava metido em algo importante.

A piscina estaria vazia não fossem três crianças loiras francesas brincando sem fazer barulho e duas senhoras repuxadas reforçando um bronzeado já reforçado. Foi fácil encontrá-lo num canto, comendo e lendo no seu iPad. O roupão monogramado T.A.

Quando chega na mesa Nílson se apresenta, timidamente, um pouco irritado de não saber como chamá-lo. O homem, que de fato é excepcionalmente branco, de um rosa pálido, está engolindo uma garfada de peixe. Ele fala segurando um guardanapo no canto a boca:

— Desculpa a pressa, mas estava faminta. Pode pedir o que quiser. Minha conta. O peixe é meio sem graça.

— Tranquilo, imagine.

Nílson ficou surpreso com o português, que era truncado mas bem falado, vogais enunciadas de maneira muito deliberada. Mas antes que isso pudesse reverter um pouco da antipatia, veio uma frase seca e atravessada:

— Eu não sei o que te contaram, mas você não sabe de quem você está lidando, ok, meu querido. Big leagues. Como fala? Primeira divisão. Estamos lidando com uma situação da maior gravidade e urgência. Utmost. Você sabe por que te chamamos, em especial, sim?

— Sei. E olha, com todo o respeito, não nos falamos tem anos, mas eu conheço o Renato tem muito tempo. Ele é meio maluco, sim, com algumas ideias radicais, mas nunca me pareceu perigoso. O que é que vocês sabem que eu não sei?

— É pra isso que você está aqui. Quero te informar do maneira adequado para você entender a importância do sr. Renato. Mas sim. Ele é um peão. Ou um coringa, não sei qual figura de jogo é melhor. Quem puxa os fios é ela.

— Ela quem?

— Ela. Infelizmente não tenho um nome para te dar, só vários codinomes ultrapassados, porque ela não se repete. Quando eu a conheci, no Canadá, ela se chamava Eva Gomes, mas tudo indica que era um nome falso. Ainda não descobri o de batismo. Estou no rastro dela há mais de dois anos. Toronto, interior da Bolívia, Shenzhen. E de repente surge no radar essa figura aqui.

Nílson pega das mãos do homem um tablet e vê a foto de um garoto com tipo meio de índio, os braços cruzados, de camiseta cinza e a cara enfezada numa foto tirada de longe, cigarro de palha nos dedos. A matéria dizia CRIADOR DE JOGO BRASILEIRO QUE É SUCESSO MUNDIAL FAZ QUESTÃO DE FICAR NOS BASTIDORES.

— É ela. Eu tenho certeza. E ela está planejando algo grande.

— Você diz esse tal de Evandro, o criador do Cabol? Já li uma matéria sobre. Parece uma figura interessante, mas não parece ter nada de radical.

— Eu sei que você tem intimidade com o jogo. E não é ele, é ela. Estou te dizendo. Eu reconheço esse rosto tão bem quanto o meu próprio. Ela trabalhou na indústria gamer no Canadá por anos, desde o final da adolescência. Até ser recrutada por mim para desenvolvimento de estratégias contra ciber-terrorismo.

Nílson tentou modular como podia uma cara de quem estava impressionado. Se fosse pra aguentar a arrogância daquele cara que ele pelo menos explicasse alguma coisa. Que que o criador do CABOL teria a ver com a copa, com o Renato, ou com qualquer coisa?

— Já conversamos demais aqui. Ainda estou cansado do vôo, vamos para o meu quarto.

No elevador, Nílson fez o possível para não transmitir nenhum conforto ao lado daquele homem tão desagradável e satisfeito consigo próprio. Seu corpo estava crispado. O homem branco deslizava pelos corredores com o seu roupão, cumprimentando os funcionários e hóspedes com a mesma amabilidade de quem os conhecia todos há muito tempo. Quando entraram no quarto, enorme e luxuoso, com um pé direito monumental, ele fez um meneio com a mão para que Nílson se sentasse na poltrona, recostou-se na cama e voltou a falar com seu tom grave e deslumbrado.

— Isso obviamente não pode sair daqui, não pode nem sair para seus superiores, ainda, por favor. É sério.

— Claro

— Tenho motivos para acreditar que ela faz parte de um grupo terrorista internacional responsável por roubar tecnologia e inteligência militar experimental. Coisa pesada.

Ele pareceu esperar por uma pergunta de Nílson, que não veio.

— Implantes neurais com nanotecnologia de malha transorgânica que você injeta com seringa na nuca, tecnologia experimental de gravação e reprodução de ondas cerebrais e ainda mais coisas que não posso nem te falar.

Ele fica calado por uns cinco segundos, examinando as unhas. Como se esperasse ser perguntado.

— Tem um item específico e muito importante sobre o qual ninguém fala nada, nada. Nem pra mim, acredite. E olha que eu tenho acesso aos níveis mais profundos de segurança de todas as agências que importam.

Nílson concordou com a cabeça, tentando esconder um pouco do desprezo que estava sentindo. Do que diabos esse filho da puta tava falando? Tecnologia militar? O Renato era um palhaço de internet. Mal sabe trocar uma lâmpada. Na época que o conheceu, cheirava e bebia tudo e transava com tudo que lhe passasse pela frente. Um palhaço maluco, até meio trambiqueiro, digamos (teve lá aquela fase de terapeuta mítico-tântrico que puta que pariu), mas um palhaço. Que viagem da porra.

— Pouco tempo depois, eu começo a ouvir uns boatos dos meus amigos no Vale do Silício. Eu tenho muitos, sabe? Percebi cedo que o futuro da inteligência tava ali, que o futuro todo tava ali, na verdade. Isso no final da década de noventa, ainda. Me aproximei das pessoas certas e ajudei muito mais do que imaginam a fazer os dois mundos se comunicarem direito. Hoje se o Google e o Facebook entendem a função que eles têm na nossa defesa nacional, se a Apple e a Microsoft produzem tudo com um backdoor prontinho pra nós, é muito por minha causa. Diretamente por minha causa.

Nílson tentou fazer uma cara de impressionado pra fazer a história continuar. Filho da puta convencido do caralho, tinha toda a pinta de estar mentindo sobre aquilo tudo. Ou então era maluco. Acha que tá impressionando quem?

— Mas enfim, como eu tava falando, estou sempre com meu ouvido no chão para ouvir manadas de búfalos ou movimento de tropas. E comecei a ouvir uns boatos nos últimos meses. Você não imagina a quantidade de doido que fica gravitando em torno desses bilionários. Gurus do transhumanismo, da informação livre e orgânica. Cada um com uma bullshit mais mirabolante. Os que fazem mais sucesso são os que falam pros milionários e bilionários o que eles já querem ouvir.

—E isso é o quê?

— Que eles vão viver para sempre.

O homem gargalhou pela primeira vez, um riso estridente e abafado de hiena, muito mais desagradável do que Nílson poderia conceber de antemão. Não conseguiu esconder uma cara de repulsa, mas o homem não pareceu notar.

— Mas enfim. Sei que tem gente oferecendo essa máquina que ela roubou pros usos mais escusos. Tinha até algum charlatão jurando que com ela você podia recuperar ondas neurais de gente morta há milhares de anos, imagina. Até eu, que sou brilhante, mas sou leigo tecnicamente, consigo perceber que era mentira. Conseguiram convencer uns bilionários a usar, um deles me jura que viveu umas horas de Roma no início do Império. Um homem adulto e poderosíssimo me disse isso, imagina. Você nem imagina quem. É um golpe, claro, só não sei como e quem está fazendo. Parece estranho para um grupo de inclinações anarquistas ficar vendendo tecnologia militar para alimentar as fantasias de poderosos entediados. Talvez a tecnologia também tenha vazado ali por dentro mesmo e não tenha conexão com o vazamento maior.

Ele parecia realmente estar se perguntando, a cara inquisitva e absorta. Quase — e Nílson não gostou de constatar isso — tesuda.

—Enfim. Essas são as hipóteses iniciais de trabalho.

Nílson ficou olhando pra ele, sem saber o que dizer. ‘Estranho’ nem começava a descrever.

— Ainda não entendi o que o Renato tem a ver com isso.

— Eu me encontrei ontem com senhores muito prestativos da sua polícia federal. Eles acreditam que Renato talvez seja um dos responsáveis pelo sequestro de seis indivíduos, entre eles uma juíza, um senador e alguns empresários. Todos eles passaram de um a três dias num sítio sendo submetidos a comportamentos degradantes que os psicóticos responsáveis chamavam de educação. Nenhum deles foi fisicamente torturado num sentido convencional. Um deles lembra de injetarem algo na sua nuca quando achavam que ele estava desacordado.

— O Renato? Você tem certeza?

— Absoluta. Eles só chegaram na figura dele porque um dos sequestrados por acidente encontrou um vídeo dele no Youtube. Haviam muitos, mas foram deletados no ano passado. Ele foi visto pela última vez em São Paulo, ano passado, mas no momento está foragido da justiça. Nunca teve conta bancária nem de celular no seu próprio nome. Você saberia lugares onde ele poderia se esconder? Amigos próximos, familiares.

— Consigo pensar em um, sim.

— Ótimo. Vá lá. Outro coisa. Vocês têm essas agências aí do governo de meio-ambiente e dos animais, tem como você ir atrás deles para descobrir ocorrências estranhas nos últimos meses?

— Que tipo de ocorrência estranha?

— Se eu já soubesse te diria, óbvio. Qualquer coisa fora do normal, talvez coisas que estejam até abafando na imprensa por ser esquisita demais. Eu ainda não posso te explicar o motivo.

— Tá bom. Vou ficar atento.

Agora Nílson tinha certeza. O cara era doido, mesmo. É bom que ele não precisa nem se preocupar em encontrar o Renato de verdade.

— Um último coisa: houve uma tentativa fracassada de roubar o exemplar original do Popol Vuh em Chicago, três meses atrás. Você conhece o Popol vuh?

— Não.

— É o livro sagrado do povo Quiché. Talvez o maior códice de mitologia pré-colombiana. É ao mesmo tempo uma cosmogonia, um relato genealógico de várias famílias e uma história de aventura de dois irmãos gêmeos que vingam a morte dos pais no inferno. E você sabe como que se dá a luta deles com os senhores do inferno?

— Não.

— Num jogo da bola. Percebe?

Nílson tenta fazer uma cara de quem percebe.

— Tou esperando o segundo sapato cair. E agora tenho quase certeza que ela está preparando alguma coisa para a copa.

Nílson fingiu que estava anotando aquilo num bloquinho de notas. Era pra levar aquilo tudo a sério?

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