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“O meu pai é feito dos jornais que ele lê, ouve e assiste. O Jornal Nacional enquanto janta, rádio do carro fixo na CBN. E todo dia no café o Correio Braziliense e a Folha que ele desdobra com impaciência (ele tanto odeia quanto respeita mais a segunda). Sempre respondendo a tudo em voz alta, com irritação progressiva.

É muito estranho o tanto que o vocabulário que ele usa e a maneira dele entender praticamente qualquer coisa vêm desses quatro ou cinco lugares. Não é que ele concorde com o que se diz nos jornais, ou mesmo acredite em boa parte deles, ele parece achar todos mentirosos, comprados ou manipulados (por forças distintas). Mas é daquilo que o mundo é feito, pra ele. É daquelas peças.

        O pai tinha também exatamente quatro eventos ou série de eventos que ele relembrava, arrodeava, remóia e comentava todos os dias desde que consigo registrar (10, 11 anos?).

Em ordem crescente de frequência semanal de menção:

1. Decisão de não tentar jogar bola profissionalmente pra estudar pra concurso e acabar passando em um de nível médio do Senado;

2. a derrota da seleção de 82;

3. a sua demoção e derrocada na carreira interna de servidor de nível médio da documentação e arquivo depois de uma insubordinação sua que ele nunca esclareceu;

4. as derrotas presidenciais de Lionel Brizola.

Parece muito claro, quando o pai fala sobre esses assuntos, que ele não os está dirigindo para a gente. Eles precisam ser expelidos, mas o fato da irrupção nos alcançar é inteiramente acidental ao fato de que esta é uma casa pequena. Saem de maneira tão impessoal e fatal como suor ou chuva.

Era o Brasil, quase sempre, que lhe ocupava. Ele também se irritava com  o resto do mundo, mas nada lhe irritava tão profunda e agudamente quanto a condição precária e insatisfatória de tudo que se dava por aqui, em qualquer esfera e em qualquer canto (seja no saneamento básico ou na zaga do Vasco).

O pai também tem muita dificuldade de configurar e explicitar pra si mesmo a relação estranha que ele tem com a seleção brasileira. Ele odeia a CBF e quase todos os jogadores mais novos, então quase não acha que faz qualquer tipo de sentido direito ficar se exaltando ostensivamente por causa daquele troço.

Mas quando vinham os jogos da Copa dava para ver na cara dele, no corpo crispado ali com as pernas meio levantadas e uma mão segurando a outra, que aquilo lhe era muito importante. Ele odiava a seleção do Parreira mais do que quase qualquer coisa (na lista de coisas mais citadas por ele que eu mantenho 2005-2006, Parreira é a segunda coisa que mais aparece na nuvem de associações de Ódio), mas quando o time perdeu da França ele desligou a TV imediatamente (na verdade, faltando segundos pro juiz apitar), apagou a luz da sala e ficou em silêncio, convidando, sem tanta sutileza, com a sua aparência ali (sem camisa, as duas mãos pensas no próprio peito, numa contrição que parecia desconfortável e que ele manteve por umas três horas) que a gente também ficasse em silêncio.

A mãe ligou de volta a luz quando era umas oito e meia. Mas quando colocou no jornal e eles foram passar a notícia ridícula sobre a derrota (como se todo mundo não já soubesse), ele não aguentou e ficou gritando com o William Bonner por muito tempo de como a culpa era toda dele, toda dele. Pela presença do Roberto Carlos na seleção brasileira, pela derrocada moral e cívica a que estávamos todos igualmente sbumetidos, pela absoluta falência anímica a que aquele filtro raso, desonesto e vazio, pipocado de mulher gostosa e carro, quase que só, havia trazido a nação brasileira.

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