25.

<<

Meu pai que me criou, e criou mal, então, até meus dezesseis anos, quando eu vazei de casa e do Piauí. Ele tinha acabado de vender a opala, ouvi ele falando com um amigo no telefone que ia beber aquilo tudo. Esperei ele ir pro bar, peguei um pouco mais de metade da grana, que eu também não sou tão desnaturado de levar tudo, juntei minhas roupas numa mochila e peguei o ônibus noturno pra Teresina, de lá outro pra Fortaleza. Foi estranho porque não cheguei a planejar. Eu pensava vagamente em sair de Pedro II desde moleque, mas nunca tinha feito nenhum plano concreto. Mas assim que ouvi ele falando em beber aquele dinheiro a raiva me deu o encaixe do que eu devia fazer. Foi como num filme, a montagem apenas me levou, sem palavra nenhuma na cabeça, a botar o dinheiro na mochila e ir embora. Talvez eu tenha narrado o que eu estava fazendo pra mim mesmo, no máximo “ele pega o dinheiro e põe no saco vazio de pão, ainda com farelos no fundo”. Eu falei pra mim mesmo que o motivo era pra ver o show do Nirvana no Rio de Janeiro. Eu achava que Kurt Cobain era um deus. Era janeiro de 1993. Eu ainda não me chamava Renato.

Tarado eu sempre fui e sempre tive alguma clareza disso desde muito novo. Mas também sempre fui muito travado na frente dos outros. A gente entranha umas culpa, umas vergonhas, que ficam mesmo depois que a gente vê que é um caô do caralho. Lembro da minha mãe falando pra eu não ficar mexendo no peru quando eu era molequinho e de achar aquilo estranhíssimo. Como que não mexia? Por que? Tava lá era pra mexer, Deus que mandava. Lógico. Mas até sair de Pedro II eu era muito tímido. Todo mundo sabia quem eu era, tinha me visto crescer. A minha vontade de transar com todas as coisas que existiam parecia impossível de se manifestar ali naquele lugar. Eu tinha muita vergonha de todo mundo que me conhecia. Eu ainda não entendia, mas era isso que tinha me tirado de lá.

Espichei rápido e fiz um buço grosso, com quinze eu já convencia que tinha dezoito, uma lombriga alta, desossada e invocada. Era só fazer uma cara preocupada ou de quem tava puto, deixar a testa assim emburrada. Pra poder economizar mais o dinheiro fui vindo de carona desde Fortaleza, pela costa, parando uns dias aqui e ali. Paguei hotel de beira de estrada por alguns dias, dormi um dia numa praça de cidade pequena, junto com dois cachorros sarnentos. Eu me achava esperto, já tinha apanhado na vida, já tinha visto algumas coisas. Mas eu morava em cidade pequena, não sabia merda nenhuma do mundo.

Depois de uma carona curta pra fora de Fortaleza com uma família que insistiu em me levar mesmo o carro tando cheio, fui com o Cláudio, um caminhoneiro viciado em Roberto Carlos, até o finzinho do Ceará, onde ele parou pra dormir com uma viúva que sempre visitava naquela rota. Era nove da noite e o fluxo tava ralo, empaquei por ali. Não tinha hospedagem em lugar nenhum na única rua da cidade.

Fui andando pela estrada confiante que conseguiria alguém, como tinha conseguido até aquela hora, mas a noite foi se arrastando e nada de aparecer, as pernas já reclamando, tive que procurar lugar pra dormir pela estrada. Achei um velho de barba desgrenhada e camiseta do São Paulo que tinha uma barraca improvisada de lona amarela perto dum posto de gasolina. Ele próprio me chamou e disse que eu podia ficar com ele, que devia chover. Não tinha nuvem nenhuma no céu. Chamava Abraão. Eu ofereci um biscoito que eu tinha comprado no posto. A gente conversou um pouco e ele me deu uma cachaça vagabunda que eu tomei mais por educação. Acordei com ele revirando minha mochila, que eu tava usando de travesseiro. Reagi e ele me bicou na boca com toda força. Eu puxei a mochila e ele, que já tava com a mão lá dentro, puxou o saco onde tava parte do dinheiro. Tentei alcançar o braço, mas ele me bicou de novo no peito e correu pro mato rindo. Eu desmontei a barraca dele e mijei na lona, cuspindo o sangue que tava empoçado nos dentes e xingando alto. Tinha uns oitocentos reais naquele saco. Mas tinha mais dinheiro enrolado num papel no fundo da mochila, e um rolo menor dentro da minha cueca. Depois desse dia eu passei a ficar muito mais ligado. Foi o primeiro de sucessivos cabaços rompidos.

>>