24.

            Válter havia sido um homem muito bonito, segundo o testemunho das fotos distribuídas pela casa. Tinha um rosto de linhas fortes, um queixo largo e imponente e um bigode que parecia exalar autoridade moral. Murilo mal conseguia ligar aquela figura das fotos com a atual, quase inteiramente careca e barriguda, grávido de doze meses, os dentes se gastando uns nos outros e o rosto quase sempre fixo numa contrição de tédio, incômodo ou desprezo. Murilo lembra de temer muito os humores do seu pai desde novinho e de encontrar na sua cara enfezada um terrível índice de que coisas ruins estavam se operando na casa, no mundo. Isto durou mais ou menos até os seus treze para quatorze anos, quando ele percebeu, numa esquisitíssima reversão, um dia, na estrada pra Governador Valadares, numa lanchonete, enquanto ele assistia a televisão pregada na parede passando o jornal, que a cara de enfezado do seu pai parecia principalmente assustada, de um bicho acuado por forças que ele não entende.

            Murilo sabia com quase toda certeza que o seu pai cumpria um quadro clínico grave de depressão. Ele percebeu isso com treze anos, mas não soube como falar isso para ninguém. Chegou a fazer alguns comentários que talvez fizessem o próprio pai perceber, trazer para as refeições comentários sobre tratamentos psiquiátricos, mas o pai nunca entendeu ou escolheu ignorar. Há muito tempo que ele não passava nem perto de considerar a possibilidade de falar alguma coisa. Hoje em dia Murilo tinha de fato dificuldade até de pensar na figura do seu pai se encaixando dentro de um contexto formal ou abstrato qualquer que fosse. O fato do seu pai ser daquele jeito que ele era parecia natural e imediato demais à sua experiência, algo anterior a qualquer nomeação e ciência discursiva, pra entrar dentro de qualquer caixinha.

             O seu pai sempre tinha sido aquela figura que não dormia, não via graça, não tinha gosto nenhum ao comer, embora o fizesse de maneira compulsiva. Aquele que via as situações se desenhando na sua pior configuração possível, que parecia se sentir desconfiado de absolutamente qualquer manifestação humana que encontrava, desde uma reportagem sobre um atentado terrorista, o resultado de uma partida do Vasco (para quem ele torcia com o mínimo envolvimento anímico possível, expresso em resmungos irritados e movimentos aparentemente irônicos das sobrancelhas, principalmente quando o time ganhava) ou uma música melosinha de MPB que tocasse no rádio.

Tudo para ele era armado, manipulado, vazio, mas ele mesmo não parecia entender armado por que, manipulado por quem. Ele apenas sentia as cordas dos títeres, as intenções recostadas por detrás de tudo, as várias formas através das quais tudo podia ser desmontado e desmistificado. E erguia, portanto, um mesmo cinismo manco diante de todos os vultos que montavam na sua frente.

            Murilo recebia aquelas impressões do pai desde cedo sem conseguir compreendê-las, sem conseguir articular a partir delas um mundo que fizesse muito sentido.

            — Esses picolés é tudo artificial. Esse gosto de limão que você ta sentindo é de mentira. Não é de limão isso aqui. E isso aqui não é de uva.

            Murilo concordava com a cabeça e lambia o picolé sem entender de que forma que aquele gosto de limão não era um gosto de limão.

            Lembra que quando mais criança se impressionava muito com essa disposição, que a princípio lhe parecia prudente e sábia, bem superior à dos outros adultos, que tolamente pareciam acreditar em religiões, países e políticos e em diversas outras coisas que, para ele, jamais pareceram muito convincentes, na verdade sequer lhe chegavam como alternativas suficientemente bem apresentadas.

            Assistindo ou lendo jornal o pai tinha sempre a mesma expressão fixa de escárnio, que esperava as notícias apenas para confirmar um sentimento que já estava ali, pronto, aceso. Ele negava com a cabeça e fazia cara de quem ridicularizava tudo aquilo que lhe diziam, todas aquelas mentiras ridículas e mal armadas. Eles passavam com frequência de carro por uma obra perto da ponte das Garças que estava inconclusa há anos, embargada. Pelo menos um terço das vezes que passavam, seu pai repetia aquela expressão e dizia.

            — Lavagem de dinheiro, isso aí.

            Murilo não entendia como isso era possível, mas ele também não tinha tanta certeza assim que sabia direito o que era lavagem de dinheiro. Apenas anos depois é que ele perceberia que o pai apresentava aquela explicação pra uma porção considerável dos fenômenos que lhe pareciam suspeitos de maracutaia (o que acabava sendo essencialmente qualquer atividade que envolvesse dinheiro e mais do que cinco pessoas).

            Ele consegue com muito esforço se lembrar de uma época em que seu pai parecia fazer algum esforço de educá-lo, de funcionar como uma figura paterna tradicional que explica a notícia do jornal, fala pra criança ser educada e cumprimentar o moço. Válter sempre teve dificuldades de ser carinhoso, mas desempenhava esse papel de educador severo de forma muito direta e atenta. Murilo consegue também se lembrar mais ou menos de como esse comportamento foi rareando e perdendo a convicção por volta dos seus onze ou doze anos, até parar inteiramente, sem que ele entendesse o porquê.

            Quando ligeiramente mais velho, tentando reconstituir o que aparentemente se passava entre ele seus pais, Murilo achou que percebeu algo que até hoje ele mantém na sua atenção. Algo que ele recupera, às vezes, como uma explicação pequena e certa de como a relação atual se configurou.  A retração do seu pai parecia ter algo a ver com a sua própria inteligência, que começou a explodir bem por essa época e com a mania que ele começou a ter de corrigir o pai quando percebia que ele estava equivocado a respeito de alguma coisa. O que começou a acontecer com frequência. Ele tentava ser gentil nas suas explicações, mas logo percebeu que estava só irritando.

            Murilo há muito tinha abandonado o hábito de anotar as coisas manualmente, mas ainda tinha muitos cadernos antigos guardados no quarto, gavetas inteiras antes reservadas a calçados e hoje cheias de papéis mal amassados transbordando os cantos. A maioria das folhas continham listas, fichamentos e exercícios de alguma língua que estivesse tentando aprender, todos auto-impostos, que ele estabelecera pra si mesmo entre os dezesseis anos e os dezenove.

            Mais ou menos nessa época ele também começou a escrever breves relatos autobiográficos, geralmente a respeito de aspectos objetivos da sua vida. Esses relatos não tinham método e nem organização, encontravam-se dispersos entre as outras folhas.

            Enquanto tentava encaixar de volta uma de suas gavetas, emperrada por um acúmulo de papeis amassados, Murilo encontrou uma folha de quatro lados que parecia ter no mínimo uns seis anos, com traços distintos de poeira marcados com força:

                                                 >