23.

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A kombi agora estava detida diante de um sinal na avenida do contorno. Renato se esparrama mais no banco, seu pé de meia vermelha toda esgarçada no dedão já tocando o pára-brisa, arqueando e esticando. Ele parece derivar uma quantidade indecente de prazer desse espreguiçamento.

— Quanto tempo até lá ainda, cê acha?

Milton responde bufando, com um risinho no canto da boca.

— Parece criança. Sei lá. Demora. Pampulha em dia de jogo da copa, porra. Acho que uma hora ainda.

         Renato quase reclama, chega a puxar o ar, mas acaba ficando quieto. Quando volta a falar, tem a expressão desativada, como se estivesse só preenchendo o silêncio.

— Milto, já chegaro os negócio tudo, bicho, que a gente falava só de zona dez ano atrás, cê imagina. As parada tudo. Os robô, as realidade virtual sinistra.

— Carro voador que é bom porra nenhuma, né?

— Velho, carro voador seria a pior parada possível, pensa nessa merda. Se carro normal já caga tudo, carro voador acabaria com o mundo em seis meses. Certeza que já inventaram, mas não deixam ninguém produzir.

— Eu tava brincando. Tu ainda tem essas viaje, hein, meu caralho. E aids e câncer também já curaram, né?

— Claro. Câncer não curaro, mas tem uns que eles próprio que inventaram. Quase todo câncer de cérebro hoje é celular que causa, sabia? Assim, coisa de oitenta, noventa por cento.

O sinal abre. Eles andam uns dez metros e param de novo. Renato pode ver na rua que cruza a deles a fachada da padaria BELO PÃO, onde lembra de comer um misto de madrugada, uma vez, com Tamires, e cujo nome e letreiro luminoso em néon azul e vermelho ele acha em igual medida singelos (o uso de néon tendo se tornado tragicamente raro na área metropolitana de Belo Horizonte, ele sente). Renato tem os ombros caídos, agora, e o resto do corpo vai igualmente derretendo no banco.

— Mas Renato, vem cá.

— Diga.

— Porque que você tá com um pedaço de papel alumínio grudado na nuca? Teus mullets escondem bem, só fui ver agorinha. Assim, que mal lhe pergunte. É sério isso?

O tom entre o jocoso e o preocupado. Tentando não soar tenso.

— Tá tudo muito zoado, Milto. Tenso. Não sei como te explicar direito. Mas tão atrás de mim.

— Tudo tá sempre zoado em todo canto. Sempre teve. E sempre tem alguém atrás de você. Renato. Tu botar papel alumínio na nunca ajuda como, exatamente?

— Bicho. Cê não tem noção. Se eu te disser você não acredita. E tá tudo cacumulando, assim. Tá tudo prestes a estourar, saca? E estourar agora.

— Isso é paranoia, só, Renato. E não é nem paranoia boa. Eu te conheço de outras pornochanchada.

— Não, veio, bicho. Sério. Serião. Eu te falei dela. Eu acho que ela tá prestes a fazer alguma merda bem federal, assim. Uma parada de escala estratosférica. A gente tava junto tinha meses, mas ela me deu um perdido tem dias, ficou mentindo que queria que eu fizesse um negócio lá no CABOL. Só pra me despistar, com certeza. E acho que é hoje, acho que é aqui.

— No jogo?

— No jogo. Ela odeia a seleção, a Copa, odeia isso tudo.

— Você exagera demais com essa garota. Ela pode ser brilhante, mas e aí? Tem lá o joguinho dela, esses investimentos esquisitos que tu falou aí, umas máquina que arrumou não sei onde, mas e daí? Vai fazer o quê? Vai explodir o estádio? Até parece.

Renato fala enquanto revira as fitas jogadas pelo chão.

— Cê nao tem noção, Milto, não tem. Não sei nem como começar a te contar. Tem umas coisas que você nem acreditaria, tenho certeza. Ela tá me mentindo, mas não sei direito o quê é que ela tá escondendo. Mas as caralhada que essa bicha já não fez, Milto.

— Ques caralhada, Renato?

— Eu juro que te conto um dia. É danada demais, a bicha.

Renato parece engolir seco antes de dizer, num tom mais baixo.

— Tou com uma impressão horrorosa de que ela talvez tenha matado uns caras, até.

—Matado? Sério? Quem?

— Isso pode ser só noia minha. Espero que seja. Eu queria te contar tudo, Milton, mas não dá. Pro teu próprio bem, até, acho. Só sei que ela tá escondendo alguma coisa séria de mim. Tenho certeza. Mas não sei o que que é.

— Cê tá viajando, Renato. Quê que cê anda tomando? Ela é toda hacker lá, morou fora, manja dos carteado. É toda turrona, tu falou, maneja o arco e o caramba, não sei quê, mas e aí? Aquela vez que eu conheci lá na Tamires, ela nem olhou na minha cara. Ela mal consegue falar com os outros.

— Nem lembrava desse dia. E ela não precisa falar com quase ninguém. Não pra fazer os trem que ela faz.

— Cê acha que ela faria um ataque mesmo? No estádio? Tipo uma bomba, sei lá?

Sem responder, Renato encontra uma fita no chão e se acende todo.

— Cacete, isso aqui é o que eu acho que é?

Antes que Milton pudesse ver qual era a fita, Renato já a havia enfiado no tocador. Uma batida rápida começa a tocar com força:

— THIS IS BLACK ALIEN AND SPEED, ORIGINAL RUDE BOYS FROM NITEROY TIRANDO O S DO PEITO DO SUPERMAN SEM ESTRESSE.

— Ê, saudade. Já te falei que eu conhecia eles lá em Niquiti, né?

— Só umas duzentas e doze vezes.

— Miltinho cê não teria um salve, não, meu mel? Alguma coisa tem que aliviar essa tensão toda aqui.

— Tu acha que eu sou o quê, Renato?

— Isso dizendo que que sim ou que não?

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