22.

Assim que a internet retornou, Murilo engoliu numa sentada todas as dezenas de atualizações atrasadas, constatou que havia recebido muito menos emails interessantes do que antecipara. Quase tudo spam. Conversou com Fábio e com outros conhecidos, ninguém parecia ter tanta novidade. Ainda assim, mesmo notando que o mundo não havia sentido a sua ausência, Murilo sentia que devorava aqueles itens novos com uma voracidade ainda mais larga, como que renovada pela apreciação de uma condição precária, que poderia deixar de existir a qualquer momento. Não sentiu nem um fiapo de saudade da falta de conexão.

Mas no mês em que ficou sem internet, e particularmente nos dias em que ficou deitado fazendo drama para a mãe e tentando sair da própria cabeça, a atenção de Murilo foi deixada para vagar longamente por si própria, teimando diversas vezes em retornar para um rascunho de romance que germinava silenciosamente na sua cabeça há tempos. Esse rascunho de romance ainda era no momento, abril de 2012, só um .doc com título aleatório (“Rasc 1 vamo la”) e seis míseras páginas de narrativa dispersa em primeira pessoa. Ainda assim, havia se tornado nos últimos dias o objeto mais importante da sua vida.

            Nenhuma outra pessoa sabia disso e Murilo não considerava contar. O fato de ser tão importante e tão recorrente na sua imaginação não significava que Murilo conseguia ter disciplina para escrevê-lo, não significava nem que ele sabia tão bem assim o que era no momento ou o que seria aquilo um dia.

            Ainda assim, cada vez mais era só nisso que ele pensava. Tomando banho, deitado na cama antes de dormir, almoçando tarde com sua mãe, mexendo no computador. O problema principal talvez fosse o protagonista, ou a protagonista. A questão era em parte essa, a indecisão dele de definir o gênero da voz que narrava a história. Isso havia adiado outras definições, parecia deixar a voz vaga demais, sua presença diluída, um vaporzinho fiapado pairando sobre tudo sem nunca ganhar densidade pra chover. Era quase como se a personagem não conseguisse convencer Murilo de que existia de fato. E se não convence nem o autor, né? Suas chances de existir adiante não soam ótimas.

No começo não era deliberado. Só depois de um tempo é que ele começou a achar que aquela ideia podia ser interessante (fazendo uma rápida varredura não achou, aliás, nenhum romance que tenha feito isso, embora imagine que exista algum, algum francês desses bem metido a besta).

            A ideia começou a se apresentar com mais firmeza na sua cabeça, escrever um romance em que uma voz de gênero ambíguo descortinasse uma vasta teia de personagens cuja vida ela acompanhasse de maneira vicária, pela internet. Uma premissa que mesmo alguém de vida escassa e principalmente virtual como Murilo pudesse preencher de maneira verossímil, com sorte. Escreva sobre aquilo que você conhece, todo mundo diz, afinal. A ideia talvez fosse boa, ele não conseguia se posicionar fora dela para julgar.

             Mas depois de mais de três meses pensando no romance todo dia ele admitiu que havia empacado de novo, não conseguia avançar além de umas quinze páginas ainda bem vagas. Nada parecido com uma trama nem fingia se apresentar. Ainda assim, um título apareceu, um dia, enquanto Murilo limpava a bunda, mal acordado. “Concreto Armado”. Assim inteiriço, como um milho. Ele achou bonito, embora não soubesse que relação poderia guardar com o pouco que já havia escrito no rascunho. No seu rascunho. Murilo ainda não havia contado aquilo pra ninguém.

>