19.

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Um homem calvo de sobretudo marrom distinto está sentado há quinze minutos num banco perto da pequena mureta que separa a calçada das pedras e do mar, em Montevideo. Tem olheiras profundas em aneis concêntricos sulcados em torno dos olhos. Lê de novo a placa Rampa República Argentina, como confirmação, embora conheça aquele lugar há anos. Parece cansado e ansioso. De tempos em tempos checa o celular, com uma cara cada vez mais irritada. Numa dessas o celular começa a tocar enquanto ele encara a sua tela, o que o assusta e o deixa com uma cara suspeita antes de atender e dizer, em inglês:

—Você sabe o que eu preciso ouvir, então vai. Não me enrola.

—Senhor Rodolfo. Calma. Em primeiro lugar, agradeço a pontualidade. E muito bonito o sobretudo. É Burberry?

Ele se virou pros lados, alarmado. Não tinha ninguém ali por perto, além de um rapaz com tipo de hippie e mullets consideráveis trocando as cordas de um violão.

—Ainda estou um pouco longe, chegarei para jantarmos depois, mas antes de mim chega quem você quer ver de verdade. Eu só não sei se você vai gostar de ouvir o que elas têm pra te falar.

—Pode deixar que eu me decido isso.

Desligou o celular e cruzou os braços. Eu me decido isso? Continou olhando em volta. Há anos ele não ficava mais ansioso de verdade ao encontrar alguém para trabalho e ele tava ansioso agora. Talvez por causa da miopia (que a vaidade não deixava corrigir em público com óculos), demorou bastante para notar o acúmulo de pessoas que havia saído de dois carros discretos, de janela escura. Seis homens e mulheres, todos com a mesma camisa social e calça pretas, todos em volta dos quarenta anos, a mesma circunspecção grave, rodeando um vulto de três cabeças que o homem vislumbrou saber de quem se tratava antes de conseguir de fato distingui-lo, quando os homens e mulheres abriram o círculo e se espalharam em torno dele.

Rodolfo se viu a poucos metros de distância de três irmãs extremamente brancas e velhas, todas diversamente parecidas com rãs, seus crânios pegados em partes (a da direita pegada em cima com a do meio, que pegava na altura da bochecha e pra trás com a da esquerda). Ele as encarava e elas o encaravam de volta. Andavam com muita dificuldade, os braços aprestados uns nos outros, pela idade e pela coordenação aparatosa dos três corpos.

As três tinham óculos escuros, roupas discretas e elegantes de senhoras recatadas, todas entre o bege e o marrom, com cabelos prateados e sorrisos maldosos que oscilavam nas suas pontas.

—Minhas queridas, minhas queridas. Quanto tempo. É sempre uma honra. Vocês falam português melhor que eu arranho e ofendo o espanhol, então eu nem tento.

O homem se aproximou um pouco encurvado, como que pedindo as mãos para beijar, o que elas concederam, a do meio com um sorriso enfadado. Antes dele terminar de beijar a terceira mão, a da esquerda já falou, impaciente:

—Cadê ela?

A do meio respondeu antes de Rodolfo.

—Calma, Tisi.

—Olha, pode ter toda a certeza que estamos movendo deus e o mundo para encontrar. Deus e o mundo. Mas vocês têm que entender as dificuldades de procurar por algo que não se pode dizer pra ninguém o que é. Não é muito fácil. O nosso interesse é o mesmo que o de vocês.

—Você não imagina o que é ficar meses sem ela, dói, dói no corpo todo, disse a da esquerda.

—É como se te amputassem de tudo.

—Não, é pior.

—Deixa de ser dramática, Tisi.

A do meio era a que menos sorria, mas quando acontecia era um gesto mais comprido e reteso, ainda mais sacana do que o das outras.

—Se você não tem informação nova sobre o paradeiro dela, imagino que esteja aqui para mendigar informações você mesmo. Sinto muito, mas você sabe perfeitamente que estamos no escuro aqui. Como todo mundo.

—Até mais, né, eu diria, disse a mais da direita.

Ninguém riu.

—Mas vocês devem lembrar ainda o que aparecia logo antes, não? A criatura sumiu tem um tempo, mas eu não ouço um pio de vocês tem mais tempo ainda.

—Não tem tanto tempo assim, Rodolfo, também não exagera. E estivemos caladas por motivos de precaução. Tivemos muitas leituras erráticas antes dela sumir. Ninguém aqui é irresponsável de ficar criando pânico sem motivo.

—Você já me falou isso, mas o que quer dizer?

—Esse é justamente o problema. Nós não sabemos. Apareceram imagens demais e todas elas instáveis demais na sua apresentação. Nunca tinha acontecido antes.

—Mas que imagens que foram, meu deus do céu? Não entendo a dificuldade de falar. Todo esse trabalho e essa grana toda pra vocês ficarem brincando comigo desse jeito.

—Mais respeito, senhor Rodolfo. Ninguém está brincando aqui. E o senhor é um de vários patronos. Se estiver tão insatisfeito assim sabe com quem falar.

—Eu sei. Mas vocês tem que me dar alguma coisa. Alguma coisa.

Elas se calaram por um instante, até que a da esquerda começou a falar.

—Teve algo que chegou com nitidez, mas depois dela sumir. Uma semana depois. Não sabemos nem como. Eu acho que quem tomou ela foi quem transmitiu. Chegou mais de uma vez. Em português. Pode ser sério, pode ser nada.

—Diz.

A do meio parecia reprovar a ideia, mas não falou nada.

—A-ham. Dois pontos. Tá vindo uma guerra. A lua ambígua tá de galera e o sol tá sozinho com o seu umbigo, cego da sua própria luz, virado de um lado só. Fim da mensagem.

—…

Ficaram em silêncio um pouco, o homem tirando sujeiras antigas do seu bolso.

—Você falou isso só pra me sacanear, não foi?

A da esquerda não disse nada. A do meio, sim.

—Encontre ela, Rodolfo. O quanto antes. Pro seu e pro nosso bem. Só posso te dizer isso.