18.

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Há anos Murilo vinha formando uma noção de si como alguém que escreve. Era uma noção vasta, mas pouco preenchida, um paletó enorme que ele tentava vestir, mas cuja forma continuava sempre elusiva. E ainda assim era a única coisa que ele sabia com certeza a respeito de si mesmo. Que ele lia e escrevia. Mexia com palavras. Nunca tinha chegado perto de articular aquilo para outra pessoa e mesmo dentro da sua cabeça não gostava de enunciar a ideia diretamente, por achar pomposa. Mas ainda assim aquilo era o fato central da sua experiência há anos.

             Murilo percebia que o peso que depositava naquela certeza era talvez excessivo, meio afetado, mas nenhuma outra imagem de uma vida viável se apresentava. Quando ele fazia o exercício mental de pensar na sua vida sem aquela certeza, o que sobrava era nada, uns móveis e barulhos, vultos que não lhe diziam muito.

            Depois de mais de um ano que ele não estudava, respondendo com barulhos pouco articulados quando os pais perguntavam dos seus planos para o futuro, o seu pai parou de pagar a internet, dizendo que era a única maneira de fazê-lo sair de casa. Murilo só descobriu quando ligou para a empresa, a mesma da TV a cabo, para  reclamar que a conexão tinha caído. A mãe explicou. Ele não disse nada ao pai. Voltou a frequentar as bibliotecas e sebos do plano, relia os livros que tinha em casa, mas também usava sempre que podia o pouco dinheiro que conseguia da mãe para alugar um computador por algumas horas na papelaria desorganizada que tinha perto de sua casa e que há alguns meses funcionava também como uma tímida lanhouse.

            Murilo tentou se manter ocupado lendo e assistindo a coisas já baixadas, escrevendo, mas há anos que ele já estava inteiramente acostumado a acompanhar um sem-número de sites e blogs todo dia. O seu agregador de RSS tinha mais de oitenta assinaturas alimentadas com frequência, uma de suas contas de email recebia mensagens de cinco listas de discussão diferentes. Sua cabeça ficava pensando nos volumes de coisas a serem vistas e descobertas brotando pelo mundo e se entulhando sem ele ali para engoli-las. Ficar privado daquilo por mais de um dia já era um alheamento muito forte, de se sentir quase literalmente puxado pra baixo, impedido, bem mais consciente do seu exato tamanho (do qual ele se elidia tão facinho, na maior parte do tempo).

            Depois de três semanas sem internet, todo o tempo que ele passava em casa era gasto deitado na cama, na meia luz, as cortinas fechadas, em silêncio. Murilo de fato estava profundamente entediado, mas fazia aquilo principalmente para dramatizar o seu incômodo de forma deliberada e ver se conseguia sensibilizar a sua mãe. Ele chegou a ficar mais de setenta e duas horas seguidas deitado, levantando só pra beber água e mijar, sem comer nada além de farelos encontrados pelo quarto. A princípio meio que fazendo uma aposta contínua consigo mesmo, tentando não pensar em nada, depois brincando que estava morto, que aquela era uma consciência precocemente defunta em vida, tentando se retirar inteiramente da sua própria experiência, repetindo pra si mesmo o poema mais longo que ele sabia de cor na época, um do Wallace Stevens que ele traduzia para o português na hora, mal e porcamente, investindo todas suas forças em ser apenas a enunciação daquilo, apenas uma voz que repete o sentido daqueles versos e não o Murilo deitado na cama e montando um teatro lamentável qualquer dentro da sua cabeça.

            A cada hora se apresentava de novo um gesto de recapitulação da cena, um pequeno, mas renovado teatro, e ele insistia consigo mesmo, tentava tirar aquele gesto dali. Pedia, quase que implorava, para que ele se retirasse.

            A sua consciência oscilava, dormitando, as barreiras do mundo bastante puídas. Depois de vinte horas daquele jeito, a voz na sua cabeça parecia em momentos não ser sua, parecia na verdade não ser nem uma voz humana, parecia uma descrição sem lugar, vídeo rodando numa aba fechada, uma descrição que então tentou fazer quietamente concordar consigo mesma, com sua mera possibilidade. E a sua voz passou a expor de que forma ela própria era possível, como se tentasse assistir à sua própria gênese. Sua visão borrada sem os óculos virada para a modulação lentamente odulante das lâminas encardidas da persiana, silenciosa, num movimento que não era nada.