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Eliot não viu quando o homem pousou na lua, nasceu com quase dez anos de atraso. Mas lembrava com frequência do relato deslumbrado dos pais de assistir o evento na televisão enquanto chapados e recém-apaixonados. Kenneth e Susan, os dois hippies de família rica da costa leste dos EUA que despirocaram no final dos anos sessenta na faculdade, viveram de maneira bem solta na Califórnia por anos, até Eliot nascer, e foram se reajustando às expectativas da família aos poucos. Ele se formou em engenharia, ela estudava matemática até largar por causa da gravidez. Os dois foram trabalhar em computação no início da década seguinte.

Ambos falavam com um mesmo entusiasmo saudosista e apaixonado de tudo da época, pra eles certamente um dos auges do espírito humano, desde a ida do homem à lua até os shows do Grateful Dead no auge e o Mother of All Demos (A Mãe de Todos os Demos), a apresentação de uma interface gráfica visionária que os dois presenciaram em 1968 numa conferência em São Francisco. Ambos viram ali, juntos, que o futuro estava na computação. Foram bem-sucedidos na área, mas não enriqueceram. Trabalharam anos em projetos grandes que não deram muito certo (ele na Xerox, ela na General Magic), embora sejam hoje considerados protótipos pioneiros por seus pares. Viram diversos conhecidos e amigos ganhando boladas monstruosas ao longo da década, alguns deles em oportunidades que eles tiveram e deixaram de perseguir, muitos deles engenheiros que os dois consideravam menos brilhantes do que eles próprios. Viram soluções suas transfiguradas em aparelhos que venderam milhões de cópias. Nunca falavam diretamente sobre essa frustração, mas ela pairava como um fedor sobre a casa. Criaram o filho para sonhar grande e não se contentar com pouca coisa.

Até os três anos de idade Eliot morou numa comuna, uma das milhares que brotaram pelos EUA naquela época, das muitas em torno de Taos, Novo México. Ele se lembra de andar pelo deserto caçando lagartos o dia todo sem camisa com várias outras crianças e da sensação insossa de dormir numa casa suburbana normal depois disso, de estranhar o tanto que era quieto. Essas imagens retornam agora enquanto Eliot atravessa o deserto de Nevada num segway modificado que pertence a um bilionário amigo seu, Donald. Estão num grupo de seis, agora, cada um com seu próprio segway. Eliot é um pouco acima do peso, rosado e ruivo. Tem olhos pequenos que sempre parecem assustados.

Donald é mais velho, sessenta e tantos, sistemático e teimoso. Os dois têm uma relação íntima, codependente, tensa e desagradável da qual Eliot sabe que só vai se livrar quando um dos dois morrer. Um ex-companheiro de trabalho dos pais que age como mentor para ele, já que não tinha filhos. Eliot aceitava de maneira relutante e passivo-agressiva.

Foi dos primeiros funcionários e investidores na Apple, além de ter sido parceiro da mãe dele na General Magic. Eliot devia muito a ele, profissionalmente, mas passava boa parte dos seus dias imaginando agressões verbais nunca concretizadas. Temia e desejava sua morte com igual intensidade.

O grupo que hoje atravessa o deserto é composto por eles dois mais um roqueiro inglês que já passou do auge tem uns quinze anos, com franja e óculos escuros soldados no rosto, acompanhado de sua namorada novinha, uma atriz australiana muito bonita e semi-famosa (de rosto, mais do que de nome) e mais um jogador aposentado brasileiro de futebol que todos descrevem como uma lenda, mas de quem Eliot nunca tinha ouvido falar, com sua esposa modelo. Acima do peso e dentuço. Amigo do roqueiro, parece, embora eles não pareçam conversar além de interjeições e gritos enquanto bebem.

Já fazia bem umas cinco horas que eles tinham tomado os cogumelos, ele sentia o efeito já se dispersar, as sensações mais nítidas e distintas. Era a décima quinta vez que ele vinha naquele festival, Burning Man. A primeira tinha sido com os pais, ainda criancinha, em São Francisco. Todo tipo de doido e desajustado se ajuntando para fazer doidura junto, no deserto. Ainda era divertido hoje, quando mais da metade dos presentes eram hipsters genéricos e gente rica desocupada que pula de festa em festa pelo mundo. Tinha mais mulher gostosa, até, e menos daquelas esquisitonas com pelo no sovaco, que lhe dão nojo. Mas não era mais a mesma coisa. Nem de longe. Eliot lembra com carinho de, quinze anos antes, chorar doido de ácido enquanto contava o drama da sua vida para um terapeuta vestido de palhaço e máscara de caveira, com uma barraquinha igual a da Lucy do Charlie Brown no meio do nada, o rosto dele subindo e descendo, compassivo, o deserto avermelhando em volta.

Desde que chegaram, Eliot tinha reclamado muito de como o festival não era o mesmo, mas percebeu que todo mundo tava achando ele chato por causa disso, então parou. Ele checa as duas garrafas de água que está trazendo numa bolsa colada ao corpo, uma com água gourmet finlandesa pura e a outra (com uma fita vermelha amarrada) com água de torneira misturada com MD puríssimo, comprado direto de quem sintetiza. Dá um gole na segunda. Ele era um mestre em administrar substâncias para o desempenho ótimo em festivais. Nas primeiras vezes que ele veio, ainda com os pais, o esquema era acampar, mesmo, lidar com poeira e tudo mais. Até por isso ele ficou um tempo sem ir, não tinha saco. Com os pais dele (entusiastas de trilhas e de autossuficiência em geral, assinantes do Whole Earth Catalog desde o seu início) ou você tinha a experiência autêntica e integral ou era melhor ficar em casa. Ele preferia ficar em casa. Mas agora o esquema desse seu amigo era bem outro, luxuoso até não poder mais, umas tendas com ar-condicionado e banheiro, chef privado, todo quarto cheio de tomadas com adaptador e toalhas cheirosas. Estão um pouco atrasados agora para um “ritual de fertilidade para startups” que uns amigos disseram ser tanto hilário quanto instigante. Os seis demoraram muito para sair das tendas, depois de chegar de jatinho de manhã cedo. Estão cheio de coisas já marcadas para fazer e gente para encontrar o resto da tarde toda. Eliot sabe que Larry e Sergey geralmente aparecem, mas disfarçados. Só os amigos próximos são avisados da fantasia. Ano passado eram collants laranjas de corpo inteiro. Eliot não é próximo o bastante para receber a informação, mas era próximo o bastante pra receber o buxixo horas depois.

Antes dos quarenta anos de idade, Eliot era o principal programador e idealizador do hardware de uma tecnologia de realidade virtual que seria, quando lançada, reconhecida imediatamente como a melhor do mundo. Com muita distância. Ele tinha certeza disso. Não à toa a DARPA tinha ido atrás do projeto quando tudo que eles tinham era um rascunho ambicioso, dois anos atrás. Mas bota ambicioso nisso. A grana que eles arrecadaram no primeiro momento, que não foi pouca, tava bem distante do montante necessário para montar um protótipo funcional. Só por isso ele vendeu o projeto, que era seu xodó desde a adolescência. Nunca quis perder o controle total da máquina e do seu uso, mas percebeu que só com dinheiro privado não seria possível. Isto não é uma interface nova, é uma indústria nova que se cria. Donald explicava com sua cadência condescendente. Mas ele tava certo, Eliot sabia. Foi assim com tudo do Vale do Silício, desde o algoritmo inicial do Google até o Google Earth, as primeiras interfaces gráficas, a ARPANET. Tudo pesquisa estatal, a grande maioria militar.

Diante do comitê parlamentar sigiloso que os visitava na Virgínia de ano em ano, na sede da DARPA, e que hoje avaliava a necessidade de mais investimento, Eliot tentava justificar os custos exagerados. Eles já haviam gastado duas vezes mais do que qualquer projeto existente de realidade virtual. A quantia era tão ridícula de alta que todos no projeto concordavam que era melhor não mencioná-la com frequência. Claro que é uma unha do orçamento militar norte-americano anual, mas ainda assim era muito dinheiro. É que o seu protótipo eleva o jogo pra outro nível, ele argumenta, apresenta todo um outro patamar de imersividade. Sempre tentava dar a esse termo, ao falar, a potência quase sensual que detinha para ele. Nunca parecia compreendido.

Enquanto alguns tentavam oferecer uma experiência sensorial completa com luvas trambolhosas de feedback háptico, simuladores de cheiro tosquérrimos, ele foi direto no pacote todo, a torrente de informação bruta ali passando entre a espinha e o crânio, o output inteiro do nervo ótico, os sinais agregados do bulbo olfactório. Todas as alternativas atuais de realidade virtual, perto disso, eram nada. Eram uma piada idiota.

Eliot de início não teve problemas com o contrato rigoroso de exclusividade e discrição, mas com o tempo foi endurecendo a raiva e a frustração de não poder se exibir com os conhecidos e ex-colegas babacas, ainda mais quando algum deles se vangloriava da IPO mixuruca e ainda assim inflado que recebeu por uma startup derivativa qualquer.

Ali no festival, quando a atriz perguntou o que ele fazia e o roqueiro inglês fingiu meio segundo de interesse, sabendo que ali estava mais um endinheirado novinho do Vale do Silício, ele só pode balbuciar que tinha um protótipo no momento sendo desenvolvido por uma agência governamental. Eles não deixam Eliot dizer que é uma realidade virtual inovadora, não deixam nem dizer que é “sigiloso”. Não soa lá muito sexy. Ele sabe. O filho da puta do jogador de futebol dentuço tava engolindo os sushis dois por vez, sem nem fingir que ouvia a conversa. Se eles tivessem visto o mapa de intensidade neural nas áreas de prazer do cérebro durante os primeiros experimentos bem-sucedidos com a máquina de imersão integral intensiva (i3, o nome provisório). Aí sim. Aí ele queria ver a cara de desinteresse. Quando uma máquina daquelas estiver em cada casa afluente da Europa e da América. Se o Jobs tinha virado um mito daquele tamanho por causa de um mísero telefone bem-feito, com aquela tela sedutora ao toque e um design malandro… O que diriam dele? Essas celebridades todas vão querer uma selfie, conselhos de investimento, quem sabe um papel proeminente nas novas indústrias de entretenimento que nascerão da sua máquina. Só as possibilidades de pornografia já deixavam a mentes dele inquieta com alguma frequência. Imagina só. Sexo com quem você quiser, quando quiser. A comida, a droga que você quiser sem as consequências pro corpo. Isso tudo não deixava ele dormir fácil e ocupava seus poucos sonhos, quando vinham. O mundo vai ser outro.

Demorou um pouco, mais do que devia, pra Eliot entender que o governo não tava lá muito interessado em entretenimento. Primeiro falaram que iam experimentar com veteranos com trauma de combate. Fazê-los experimentar encenações dos seus traumas para poder separá-los. Não deu muito certo. Agora Eliot acha que nem lhe contam mais o que estão fazendo com seu hardware.

O vento joga areia dentro do seu ouvido e do lenço que protege seu pescoço e nariz, ele para o segway para tentar tirar. Vê o seu grupo se distanciar, um sol laranja derretendo na distância equalizada do deserto. Babacas, ele pensa. Mas vão voltar. O MD estava com ele, afinal.

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