16.

<

          Se por algum motivo Murilo fosse convocado a falar de si mesmo, a definir de forma sucinta a sua vida, ele diria que vive de segunda mão.

Vivia imaginando, distraído, ao tomar banho ou comer, circunstâncias que o forçassem a fazer isso, situações sempre muito distantes da sua vida real (como entrevistas em algum programa de televisão ou discurso na ocasião do recebimento de algum prêmio).

Com isso ele queria dizer que ele não tinha quase nenhum contato concreto com o mundo e com todo seu espectro ilimitado de experiências possíveis. Aos vinte e quatro anos de idade, ele nunca tinha beijado nenhuma menina (e nem nenhum menino), não tinha desde os doze ou treze nenhum amigo com quem interagisse fora do computador, nunca tinha usado nenhuma droga, nunca nem tinha ficado bêbado de verdade, nunca tinha trabalhado, não estudava dentro de nenhuma instituição, nem praticava nenhum esporte desde sua última aula de educação física no ensino médio e há pelo menos dez anos não saía de Brasília. Murilo teve o hábito de freqüentar bibliotecas na adolescência, em especial a da UnB, mas nem isso ele fazia mais, praticamente. Ele nem lembrava a última vez que tinha saído de casa que não fosse em circunstâncias semelhantes àquela de hoje, de procurar algo para comer de madrugada, sozinho, a pé. Aquele era o maior (no sentido de mais prolongado e exigente) contato que ele tivera com a materialidade do mundo na semana.

            Para ele, o mundo acontecia principalmente como um fenômeno estético, ele dizia pra si mesmo. Sabe, Jô, Dave, Marília? (ainda na entrevista, fazendo pequenos ajustes, imaginando o ponto fraco dos entrevistadores e de que maneira ele gostaria de agradá-los).

E com essa frase meio pretensiosa ele queria dizer, apenas, que ele assistia ao mundo como quem assiste a um filme. As suas representações coletivas se batendo por aí em polêmicas, campeonatos de futebol, guerras civis, vanguardas artísticas, opiniões aceitáveis e inaceitáveis, ajustes demográficos e expectativas de investimento.

            Tudo isso ele assistia sempre do mesmo lugar, a partir do seu computador no seu quarto, diante do qual ele diariamente se esparramava desde às duas da tarde até às seis da manhã, com ligeiras e erráticas interrupções para banheiro e refeição.

            Murilo vivia assim há mais de sete anos, desde que fora jubilado da universidade. Em nenhum momento tomou uma decisão explícita de abandonar, foi acontecendo lentamente, a cada nova aula que ele acabava matando por preguiça e um pouco por raiva, por não mais conseguir aguentar o que ele entendia ser a mediocridade e a arrogância dos professores. O tanto que eles não pareciam se importar com coisas que para Murilo eram muito importantes ou claramente não sabiam do que estavam falando, esses dois sentimentos alternando em quase toda aula até ele perceber no fim do semestre que já havia ultrapassado o limite de faltas daquela matéria, e de outra, e de outra (reprovou cinco das seis matérias em que se matriculou por falta, passou com SS na outra, do professor cearense, exigente e simpático).

            No segundo semestre ele nem foi atrás de descobrir da matrícula e nem se ele estava ou não em condição. Passou uma semana deitado no quarto, imaginando que a qualquer momento o seu pai ou sua mãe (provavelmente o seu pai) entrariam gritando, não aguentando mais, não aceitando mais o seu silêncio e sua passividade e o forçando a sair da cama e fazer alguma coisa da sua vida. Ele imaginou essa cena em diversas configurações, diversos ritmos dramáticos e roteiros diferentes. Nenhuma delas se sucedeu.

             Murilo foi de fato jubilado, a cartinha da UnB pregada na geladeira por meses até a mãe finalmente tirar, e continuou passando os dias no quarto, quase sempre deitado, lendo parágrafos aleatórios de seus livros favoritos, achando que talvez conseguisse retirar deles algum alento. Mas ele não estava exatamente numa situação onde quisesse procurar alento. O que mais parecia era que tudo tinha se esvaziado, estando lá o seu substituto, oco por dentro.  Não era nem triste, direito, que triste envolveria alguma cor ou disposição. Era mais um despreenchimento, mesmo, como se o mundo todo estivesse prendendo a respiração há muito, muito tempo.

            Essa sensação quando vinha na sua máxima resolução era muito pesada, quase avassaladora. Mas ela só vinha assim às vezes.

>