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DIÁRIO DE UM INICIANTE NO CABOL

Dia 1

            A primeira coisa que você descobre ao começar a jogar é que o CABOL é confuso e assustador. Se você é ‘n00b’ (newbie, nilba, i.e. novato, segundo o meu sobrinho) e seu nível é baixo, boa parte do território dos gerais não é aconselhável pra você, estando todo tomado de salteadores, drones militares chineses e norte-americanos, destacamentos genuínos e piratas da Polícia Rodoviária Federal (ambos perigosos), nuvens de nano-gafanhotos, batalhas marcadas ou espontâneas entre guildas, eventos coreografados da narrativa central do servidor. Ou seja. Todo tipo de treta acontecendo sem que você tenha ainda qualquer capacidade de lidar com coisa alguma.

É importante deixar claro que eu não costumo jogar essas coisas. Joguei muito videogame na infância e juventude, mas quase nada depois disso. Tenho quarenta e dois anos na cara e gosto de pensar que sou adulto. Nunca tinha jogado nenhum desses MMORPG, jogos onde milhares de usuários compartilham o mesmo universo em servidores gigantescos. O CABOL (apelido do CABULOSO ONLINE) é o primeiro sucesso global do gênero a sair da América Latina. Surgiu em 2012, mas começou a ganhar o mundo em 2013, atingindo a marca de um milhão de usuários ativos. Foi por aí que piadas internas e eventos do jogo começaram a vazar para o público em geral, principalmente no twitter (onde eu habito). Cada vez mais eu sentia que teria que jogar para entender o que era aquele fenômeno.

Como se sabe o jogo se passa num futuro pós-apocalíptico (discute-se a data exata) em que a terra está toda devastada, os oceanos subiram e se acidificaram, muitos dos animais que ainda sobrevivem sofreram mutações horríveis. Vou resumir tudo que absorvi lendo o manual e vendo o vídeozinho de introdução. As ruínas dos estados-nações se veem atravessadas por vastos organismos corporativos transnacionais com suas próprias forças militares. A Europa fechou completamente suas fronteiras para estrangeiros e os rumores do que se passa lá dentro divergem, entre utopia globalista e campo de concentração de refugiados do clima. EUA e China são dos poucos países que ainda existem de maneira reconhecível e ambos têm bases militares mal disfarçadas no território brasileiro. Existe um mínimo de normalidade para as elites nos centros urbanos, mas a maior parte do território antes conhecido como Brasil é terra de ninguém.

O fato do jogo ser brasileiro era o que mais me interessava, claro, era inédito um produto nosso fazer tanto sucesso e chamar tanta atenção da imprensa especializada. A empresa por trás, com seu nome de vilã de filme, Synopticon, foi criada em 2012 legalmente por um irlandês naturalizado brasileiro chamado Dennis O’Leary. O nome do jogo e alguns elementos do universo saíram de uma HQ criada por um artista pouco conhecido (Gustavo Peterson), mas o verdadeiro programador-chefe e manda-chuva geral do CABOL, segundo todo mundo, seria um tal de Evandro, um paraense misterioso e prodígio, novinho, listado no site da empresa como “diretor criativo”, que não dá entrevistas e nem tira fotos para a imprensa. Me interessava também as várias culturas de nicho que proliferavam ali dentro, desde grupos de feministas adolescentes criando comunas matriarcais no pantanal até as “brigadas do politicamente incorreto”, grupos paulistas e catarinenses que saíam juntos para xingar o outros e agitar bandeiras confederadas e carregar bonecos infláveis dos presidentes da Ditadura Militar.

           Quando se cria um avatar novo, você sempre começa em alguma das várias cidades pequenas parecidas espalhadas pelo território imenso do jogo. Tem uma fase tutorial que você pode escolher pular, e que todo jogador mais experiente acha muito enfadonha, mas que eu achei melhor fazer. Nessa fase, todo novo avatar pode escolher se vai focar suas habilidades na força bruta ou nas artimanhas técnicas (ou um pouco de cada). A maioria dos jogadores andava armada até o dentes, mas todo jogador, mesmo os mais brutamontes, precisava ter habilidades mínimas como hacker dentro do jogo a partir de um determinado nível de dificuldade. Não existe nem distribuição nacional de energia e nem uma internet global, existem inúmeras redes elétricas e informacionais menores, algumas criadas pelos próprios jogadores dentro do jogo (é confuso).

Assim como Minecraft (outro jogo que conheço pelo meu sobrinho) e vários outros sucessos da época, o jogo lhe permite construir itens a partir de outros itens e de materiais encontrados pelo universo. Essa era a qualidade mais elogiada pelos gringos, inclusive, o sistema de montagem de novos objetos técnicos teria uma abertura muito maior do que os sistemas disponíveis na época. Como que honrando a brasileiríssima “gambiarra”, as combinações criativas mais improváveis funcionam no jogo, desde botar bombril numa antena para melhorar seu sinal até produzir armaduras com as carcaças de drones encouraçados que se encontra por aí, colando pedaços em caneleiras de futsal e sutiãs.

            Se você é desorientado, como eu, o melhor a princípio quando não se tem nem nível e nem equipamento pra lidar com as tantas ameaças é ficar andando pelos territórios mais seguros do jogo, perto das estradas federais e nos centros das cidades maiores, onde a “paz” é razoavelmente garantida por forças estatais e extra-estatais, torres com sniper montadas em todas avenidas e praças principais. O maior risco nessas estradas e periferias urbanas é o de encontrar uma capivara mutante, que é basicamente uma capivara sem pelos, avermelhada, enorme e aparentemente cega. A primeira que eu encontrei me assustou muito, porque ela grita feio e te dá umas dentadas escrotas. Mesmo ela causando pouco dano, eu morri sem conseguir dominar a interface de combate a tempo. Na segunda vez que encontrei uma, eu a espanquei desesperadamente com um pedaço de pau, meu único item, mas acabei ficando com pena ao vê-la desfalecer com um guinchado agudo, o corpo dela tombado entre os destroços de um viaduto de concreto por onde eu andava. A violência do CABOL é quase sempre caricatural, cômica, como num desenho animado. Mas ela também consegue ser feia e triste. Ao contrário da maioria dos jogos, os corpos de NPCs (personagens não-jogadores) não desaparecem assim que morrem. Precisam ser enterrados ou incinerados. A capivara você pode comer, mesmo sendo radioativa, segundo meu sobrinho. Ela te alimenta, mas tira um pouco de vida. Só não pode comer mais de três vezes.

            O que mais chama a atenção de alguém desacostumado com esses jogos das últimas décadas é a extensão. O território do jogo é muito, muito, muito vasto.

             Desde a versão 2.12, diz o meu sobrinho, com a autoridade de quem parece ter feito pós-doutorado sobre o assunto, o servidor principal reproduz de maneira simplificada a extensão do Brasil, numa proporção mais ou menos cem vezes menor (o que ainda é muito, muito grande, se você para pra pensar, quase 80 mil km2). É o segundo maior “mundo persistente” do gênero, criado num tempo recorde por uma empresa pequena. E essa proporção diminui com cada grande expansão do jogo. Os pontos centrais se mantêm parecidos, as cidades e territórios mais antigos não mudam muito, mas os intervalos entre eles vão aumentando aos poucos de tamanho.

             No meu primeiro dia, depois da fase tutorial, andei por uns vinte minutos no que parecia ser o centro destruído de Fortaleza, minha cidade natal, tomado por uma torcida organizada do Ceará chamada ~~netos do VOZÃO~~ (o tal do Vozão sendo um jogador muito poderoso, nível pra cima de 60, cujo avatar é um velhinho de barbas brancas enormes que vive enfurnado no topo de numa torre de metal de altura periclitante construída por ele mesmo em Ondina, em cima de um bunker que delimita parte da praia para seu uso privativo, matando qualquer um que se aproxime demais dela sem autorização com minas terrestres e metralhadoras-automáticas cuidadosamente escondidas).

            Reconheci vários cantos Fortaleza ali numa caricatura derruída e em escala reduzida. A avenida Beira-Mar, a Saboia. Supermercados e shoppings revirados e saqueados, com gente morando dentro. A maior parte dos prédios tombada, entulhos cheios de corpos e lixo por todo canto, nuvens de poluição pixelada assentando sobre a cidade no entardecer.

Dia 2

            Com algumas horas você vai pegando a dinâmica, as manhas da interface, os códigos impostos pelo jogo e criados pelos próprios jogadores. Há muitas seitas, religiões, guildas, alianças militares e comerciais, clãs e torcidas organizadas dentro do CABOL. Sendo mau jogador e ainda de um nível baixo, a maneira mais fácil de garantir a sua sobrevivência é entrar em algum grupo, o que lhe garante alguma proteção e infraestrutura. 

            É possível sobreviver os níveis mais baixos sozinho, mas é muito difícil. Quem faz isso ganha mais respeito e se prova como cabuloso de cara, jogador sério. Tu não vê nenhum fanfarrão upando sozinho antes de chegar num nível doze pra cima.

            Claro que dá maior vontade de tentar ser o sinistrão e jogar sozinho, mas eu tenho que ser realista, jogo mal pra caramba. E o meu interesse é principalmente antropológico e jornalístico, ver o que se passa ali dentro daquela bagunça.

            Segundo o meu sobrinho, além das torcidas organizadas de clubes cariocas e paulistas (às quais eu obviamente me recuso a pertencer por motivos éticos), um dos grupo mais disseminados e espalhados pelo Brasil era o <METAL NOBRE>, que começou como um grupo de metaleiros cristãos, mas havia se expandido até um extenso e poderosíssimo grupo composto principalmente de uma aliança entre motoqueiros e neuropatas (“e não de motoqueiros neuropatas, outra galera, eles odeiam quando confundem”) concentrados principalmente no Centro-Oeste e no Sul. Eles tinham hoje mais de dez mil membros (dos quais, segundo o meu sobrinho, só uns quarenta por cento deviam ser bots).

            Eles têm diversas caravanas de dezenas de motoqueiros onde é possível viajar com alguma segurança (“muito difícil alguém ter coragem de tretar uma caravana inteira deles”) por boa parte do Brasil do CABOL, que é exatamente o que eu quero fazer.

            Eu tinha reservas de vestir o meu avatar como motoqueiro e ficar ouvindo metal cristão, mas parecia a opção mais prática no momento. Entrei para o grupo, trouxe uma carcaça de capivara mutante como oferenda de inscrição, passei por um juramento esquisito ouvindo um louvor pesadíssimo e logo já tava fazendo parte de uma caravana deles rumo ao Sul. Sentado na caçamba de uma caminhonete, amontoado com os outros novatos (só ganhamos nossas próprias motos depois de duas missões).

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