13.

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Eu bato na porta entreaberta com o nó do dedo. Silvinho nem olha enquanto responde:

—Pode entrar, meu querido.

Sílvio Botelho era um senhor gordo de orelhas peludas e risinho displicente que vinha agindo na capacidade de meu chefe há mais de um ano. Eu o odiava profundamente. É verdade que tem algo meio entranhando em mim que me faz odiar chefes de um jeito quase automático. Mas o Silvinho fazia por onde.

—Nilsão, Nilsão, Nilsão. Então, como que andam tuas diligências?

—Quais que você quer dizer, exatamente?

Ele não tirou os olhos do computador, ignorou completamente a minha pergunta e a que ele próprio tinha acabado de fazer.

—Então, eu tenho um negócio novo pra ti. E agora é importante, hein?

Duvideodó. Não só porque eu tou encostado desde que me pegaram jogando CABOL no escritório, mas porque porra nenhuma que me tocam nesta merda é importante. Pras arapongagens realmente sérias ninguém me chama. Só me botam para resolver perrengue em Assunção, grampear um desafeto desimportante de alguém em Goiânia sem nem saber o motivo.

Eu nunca tive ilusões de que teria uma vida glamurosa ou excitante entrando na ABIN. A gente tá no Brasil, afinal. Eu não esperava filme americano de espião, já imaginava que o negócio não seria essa coisa toda. Mas vocês não têm ideia.

Meu nome é Nílson Rodrigues (sim). Eu passei no concurso de agente de inteligência há cinco anos. Já na ESINT, a escola de agentes e oficiais de inteligência, eu comecei a sentir o drama. Tinha um professor lá dentro, uma vaca sagrada, respeitadíssimo, chamado Rubens. A aula dele consistia numa apresentação errática de powerpoint com slides alucinados e mal-confeccionados dizendo que todas as ONGs de proteção da natureza e de direitos indígenas eram conspirações militares europeias para tomar a Amazônia. Não sou nenhum hippie, mas até eu fiquei sem jeito. As evidências citadas disso eram dois livros norte-americanos da década de noventa, os dois com títulos sensacionalistas. Perguntei, timidamente: todas? Ele respondeu, com os olhos faiscando: todas. O resto do curso foi daí pra baixo.

A ABIN, pra quem não sabe, nasceu em 1999, no governo FHC, assumindo as atribuições do Sistema Nacional de Informações, criado pelo regime militar em junho de 64, desmontado pelo Collor. Oficialmente ninguém dos quadros antigos sobreviveu, na verdade um punhado de funcionários de carreira fieis foi transplantado no escuro e continuava ali, quietinho. Silvinho era um deles.

Setenta e blau no dorso e impressão de que poderia durar mais uns cem anos ali. Era só tomar uma gota de álcool que começava a falar da época áurea de quando entrou, do Fountoura, Newton Cruz, dos dragões que eles tinham por todo canto. Eu tenho zero paciência. Não respondia, fazia cara de paisagem. Alguns colegas davam trela, achavam graça. Eu estou longe de ser esquerdinha, de chamar guerrilheiro de herói, mas também não sou tonto de endeusar os imbecis dos militares. Meu pai conheceu o Médici, aquilo ali era burro como uma porta. Incapaz de entender uma frase com mais de duas orações.

Silvinho finalmente volta a falar.

—Cê sabe da paranoia que tá lá em cima com esse negócio de Copa, né?

—Sei, sei.

—Qualquer merdinha tem alguém pra dizer que é perigoso, que é não sei o quê, que é aquilo. Tá parecendo americano com medo de terrorista de tão paranoico que tão alguns ali. Se tu quer saber eu acho uma babaquice, terrorista tá cagando pro Brasil, a gente não tem nada que ver com os Khaled. Khaled aqui é da paz, é Bib’sfiha. E traficante e vagabundo normal não têm interesse nenhum de criar confusão nessas horas. Mas enfim, né? Eu não mando em mim. Só mando em você.

E ele sorri que nem o filho da puta que é, quando fala isso. Sem nem olhar pro lado. De todos os meus (muitos) motivos inteiramente legítimos pra odiar Silvinho, acho que o principal é o fato de que pelo menos oitenta por cento das vezes em que eu o encontro na sua sala ele está casualmente passeando por incontáveis janelas com ensaios de fotos de prostitutas oferecendo seus serviços. O monitor dele fica virado de costas pra quem chega na sua sala, mas o vidro das estantes dos vidros reflete a tela com integridade o bastante pra que eu consiga ver as fotos das garotas com alguma riqueza de detalhe.

—Lembra quando eu te chamei aqui uns meses atrás? Pra falar sobre aquele joguinho que você ficava jogando no trabalho?

—Lembro, claro.

Não é tanto o fato dele comer prostitutas que me faz odiá-lo, exatamente (embora não seja um hábito que eu respeite muito), mas o fato de que ele me acha tão insignificante que não se incomode de esparrar aquilo daquela forma.

—Então, por uma porra duma, como que chama mesmo, ironia tremenda, é disso que eu quero falar contigo. Eu pensei em você porque sei que você conhece essas coisas de internet. Você por acaso já ouviu falar de um maluco chamado Renato Mussum?

Eu gelei. Não tanto porque eu tivesse algo a temer com aquela associação, mais pela incongruência, mesmo. Eu não ouvia alguém falar aquele nome em voz alta tinha muito tempo.

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