10.

Assim que ele se aproxima do lugar com o M enorme amarelo armado, ele já se coloca na fila para ser atendido, o único pedestre numa fila de carros. Uma imagem do que ele tá fazendo se apresenta na sua cabeça, vem pronta e não solicitada, vazia, quase um diagrama, de jovens ao redor do mundo comendo este tipo de comida norte-americana de madrugada, uma cena que diz tanto da sua época.

Ele se orgulhava da sua capacidade de manter, a todo momento, uma consciência mais ou menos preenchida e aguda da extraordinária contingência histórica e técnica de tudo aquilo, todos os protocolos em curso, todos os eventos geopolíticos passados que permitiam que aquela rede mundial de hambúrgueres vendidos de forma prática e pouco saudável estivesse aberta de madrugada em Brasília, em 2012..

Ele não acha aquela imagem atraente, mas o mero fato de ser uma imagem reconhecível de alguma forma faz com que ele queira participar dela. Ele vai lá com alguma frequência, mas menos do que gostaria.

Murilo também viu outro dia um comercial que mostrava um sundae de tangerina e estava vagamente intrigado pela ideia de um sundae de tangerina.

No seu ouvido a professora fala que a célula engoliu a bactéria que virou a mitocôndria. Outra maneira de dizer seria que as duas entraram em colaboração simbiótica. Murilo pensa que as duas imagens são muito diferentes. Ele não diria que ele e o sanduíche que ele vai comer entrarão numa colaboração simbiótica. Mas quem sabe ele e o vasto e demoníaco complexo dos Arcos Dourados não estão metidos numa coisa assim?

Ele ri, pausa a aula por um momento. Não quer ouvir falar de bactérias agora. Mas ao invés de se aquietar, sua cabeça de repente começa a ecoar uma voz alheia, de um professor antipático e arrogante dizendo que a literatura era um sistema semiótico fechado em si mesmo.

E Murilo responde a essa voz alheia com outra voz alheia, imitando um sotaque judeu nova-iorquino que ele consegue imaginar, mas não reproduzir com a boca. Tanto o comentário quanto a resposta papagaiando gente que ele leu já há quase dez anos, a maioria, nos seus ávidos quinze pra dezesseis anos.

Ele encena com essa voz alheia e ingênua toda uma defesa da literatura como uma apaixonada e ruidosa repetição da realidade contra ela mesma, enquanto seus dedos procuram por moedas no bolso e tentam determinar o seu valor pelo tamanho, fazer mais uma vez a soma do dinheiro que tem e
de quanto que ele pode comprar ali.

Se fosse comer o sundae, teria que se contentar com um sanduíche desses pequenos. A sua fome não seria exatamente satisfeita. Talvez ele tivesse que comer berinjela.

Na frente dele há um Celta branco e depois uma Pajero enorme. Ele vê as silhuetas ali dentro, a maioria grupos que devem estar saindo de alguma festa ou bar, a figura  dele deprimente, talvez até meio assustadora pras meninas mais bobas e impressionáveis. Os seus vinte e tantos anos parecendo trinta e tantos, talvez, sua barba enorme, seu cabelo desgrenhado, com fones de ouvido, olhos profundamente inteligentes detidos neles mesmos, como se sempre introjetados, notando menos o mundo exterior do que os arabescos e as volutas incessantes ali dentro.

Murilo era um tanto baixo, e há anos que se avolumava lentamente debaixo das suas camisetas uma pança cada vez mais vergonhosa. Ele frequentemente deixava a barba crescer até ficar bem fechada e cheia, um pouco esquisita de tão grande, até que ele eventualmente fosse cortar porque a mãe parecia ficar tão aborrecida com a existência dela que passava a valer o esforço daquela meia hora no banheiro, primeiro tirando uns chumaços com a tesourinha de cortar unha e depois passando o barbeador do pai.

Por muito tempo ele tentava entender por que a barba incomodava tanto a sua mãe. A melhor explicação que conseguiu formular era que a mãe já devia ter um tanto de dificuldade com a existência do seu filho, recluso e esquisitão que mal fala, ela já devia ter montado com muito esforço uma imagem dele com a qual ela conseguisse lidar no dia a dia, e aquela barba parecia exceder os limites de aceitabilidade daquela imagem; aquele único detalhe, aparentemente tão simples, transmudando-o de um menino gentil, tímido, estudioso e quieto num homem assustador e demoníaco, com sua barba preta desgrenhada projetando seu volume muito além do queixo e das bochechas, já quase ensaiando suas próprias formas detidas e estranhas redesenhadas sempre que Murilo coçava o pescoço e as bochechas (o que ele fazia com uma frequência enervante).

Os seus olhos eram pequenos e muito expressivos, pareciam toda hora alarmados com o absurdo ou espanto que era qualquer coisa, qualquer objeto ou evento. Ele quase não abria a boca,
mas quando falava desencadeava uma série ordenada e comprida de frases amaciadas e bem encadeadas que parecia ter sido escrita com muita antecedência.

Sua voz saía sempre fraquinha, negaceada, num tom que parecia desmontar imediatamente qualquer pretensão de aquela frase (ou, de fato, qualquer coisa) importar tanto assim.

Depois de dez minutos, chega a sua vez no drive-thru. Ele dá pause na aula para poder conversar direito com o atendente. É um menino novo, magro, de aparelho, que parece em algum nível contente com o trabalho que está fazendo, o que Murilo admira, mas tem muita dificuldade de entender. Talvez ele só finja muito bem por um senso de dever ou educação. O seu dinheiro dá exatamente pra uma batata frita pequena e um sundae, que ele recebe na janela seguinte sem saco de papelão, de uma moça gordinha que sempre está lá e que parece reconhecê-lo.

Murilo prossegue com a aula e come ali em pé, perto do parquinho infantil fechado e cercado por grade. Como dava pra imaginar, a calda de tangerina é gosmenta e com gosto tremendamente artificial. Ele imagina o laboratório onde aquele gosto é composto, seus funcionários provavelmente alemães ou japoneses (para Murilo é inverossímil a imagem de qualquer outra nacionalidade fazendo esse tipo de coisa) tentando honestamente determinar se aquilo se parece com tangerina. O problema não era que aquela fosse uma metáfora química para tangerina. Murilo estava acostumado demais com artificialidade para se incomodar com algo assim. O problema é que era uma metáfora ruim.

Ele percebe que perdeu mais uma vez o fio da meada na aula, a classe de repente irrompendo numa risada rara cuja causa ele não conseguiu pegar. As piadas dessa professora eram tão ruins que eram boas. Ele recupera o seu aparelhinho do bolso e volta o arquivo nuns vinte segundos, os dedos engordurados sujando a tela.

Na mesma rua onde estava, Murilo passa ainda por uma outra lanchonete aberta de madrugada e cheia de gente nova e arrumada voltando de eventos noturnos. Mulheres com pernas enormes estadeadas de fora naquele frio, homens tão grandes de músculos bulbosos que Murilo não consegue deixar de achar engraçados. Ele força a si mesmo a repetir em voz alta aquela palavra que ele escuta da voz esganiçada de uma das meninas, uma palavra que ele nunca disse na vida sem aquele tom irônico que retorna agora automaticamente. Balada.

Um carro branco com luzes azuis saindo de baixo e música tão alta que seus graves são sentidos como forças percucientes vem das duzentos numa velocidade imbecil, derrapando e mudando de pista de forma irregular antes de estacionar de maneira espetacular na frente do Subway.

A aula termina antes que ele chegue em casa, a professora se despede dos alunos e fala da aula seguinte (que ele ainda não baixou). O arquivo continua soando por algum tempo, Murilo ouvindo o barulho de papéis sendo distribuídos, mochilas sendo fechadas, pessoas agrupando seus casacos e pequenas extensões materiais antes de sair de uma sala de aula que ele consegue imaginar perfeitamente até seus mínimos detalhes, num final de tarde recuperado dum modo tão precário.

Ele já consegue ver de longe a fileira de casas amontoadas que contém a sua. Ele tenta andar rápido, sabe que teve alguns sequestros relâmpagos por ali perto nas últimas semanas, porque sua mãe fala disso sempre que vê que ele saiu de noite. Seria até engraçado se eles pegassem ele num negócio desses. Teriam dificuldade de acreditar que um moleque velho e, dependendo dos seus termos, com cara de playboy não tinha conta no banco e nem celular, não mais que quarenta centavos no bolso.