09.

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Os mortos voltaram de Osasco, onde não encontraram o que se procurava, e vamo com calma que toda opalescência será respeitada, como que explica? Já tá indo, já? Ô, Creuzebek, no top de quatro já vai. Tudo vai ser devidamente esclarecido em seu tempo. Tá doido. Lembro dos fósforos feito soldadinhos no comercial, marchando.

Triste, triste mesmo eu fiquei quando a minha mãe morreu. Depois disso, não acho que jamais tenha ficado triste com nada de verdade. Desde os sei lá quantos anos que eu assisto minha vida como quem assiste um filme, removido de algumas coisas. Eu vejo o meu corpo e eu tento contorcê-lo pra caber nos buracos e me desviar dos escombro caindo. E eu tento comer tudo. Não é muito mais complicado que isso. Tem também umas técnicas que eu desenvolvi, pras quais não tenho nome que se divulgue. Umas pra lidar com dor, de concentrar tudo teu em encontrar a pulsação e virar ela até que não doa, umas pra deixar de estar onde eu estava, mesmo quando tem mais ou menos setecentos inputs sensoriais bem gritantes e incontornáveis te dizendo do lugar onde cê se encontra, de ainda assim tu se fazer em outro canto. Pode parecer besta, mas não é exagero dizer que salvou a minha vida numa série de ocasiões.

O meu pai chamava Pedro e eu ficava muito impressionado dele chamar Pedro, a cidade Pedro II, como se a cidade fosse em homenagem a ele ou pelo menos, de alguma forma, uma entidade secundária em relação a ele. Só isso ali me deu já quase certeza que eu era predestinado de alguma coisa. Isso eu com uns oito, nove anos. Eu pensava: pronto, é isso, serei fatalmente Imperador do Brasil. Fiquei muito preocupado, a testa enfezada, assim, já meio suando. Eu tinha uns sonhos onde eu e o Jorge Ben encontrávamos a cabeça de Pedro II enterrada, ele era apontado Imperador do Brasil e eu, seu consorte-conselheiro-íntimo-Rasputão.

Eu não distinguia muito bem direito entre sonho e realidade, quando era moleque. Eu via, claro, que a vida desperta ali, onde eu ajudava minha mãe a arrumar a casa, o sol queimava tudo com raiva e tudo era uma desgrameira mal-ajambrada, era bem mais firme que a outra, mas a outra era tão forte, também, tão vívida, eu não entendia como que o povo dizia que aquilo não existia, sempre que eu sonhava aquilo ali existia, sim, ué, como não? Eu e Jorge Ben nuns cavalos andando em cima duns rios e caçando argentinos escondidos em forma de pedra, ele encostava a espada de madeira na pedra e falava uma fórmula que eu não escutava direito e ela desvirava em gente de novo, ele xingava os argentinos de que todos pareciam o Maradona ou o Batistuta, e saíam correndo os gordinhos,
tudo rindo, pra floresta. Eu não contava os sonhos pro meu pai, que ele ficava bravo, falava pra eu deixar de besteira.

Ele era um homem muito sério, enfezado,  falava um “Eia” bem anasalado pra quase todo fenômeno do mundo, variando só a cara dele em (quase nunca) sorrir ou (quase sempre) se amuar. Tinha medo de tudo. Alheio a tudo que não fosse carro, cachaça, o Flamengo e o River. Fiquei mais alto que ele muito cedo, e ele nunca lidou bem com isso. Eu até hoje, do nada, às vezes me endireito a espinha lembrando dele me dando um tapa pra eu endireitar. Dei trabalho pra caralho, isso ninguém vai negar, também.

Minha mãe era linda, muito brava e muito carinhosa, morreu, eu não tinha nem nove anos. Foi carro, essa desgraça. Ficou no hospital agonizando horas, pelo que me contaram. Tava voltando de São Luís de carona com primos. Um caminhoneiro cochilando fechou o carro, que tava com mais seis pessoas dentro. Quatro morreram. Duas eram crianças de colo.

Ela chamava Elizete. Eu entendia Lizete, e até hoje penso Lizete. Quando falam Elizete, eu nem penso na minha mãe. Exceto se for a Elizeth Cardoso, que aí eu já associei. Tenho umas memórias muito fortes de ficar percorrendo o corpo dela, ela só de short e camiseta, umas pernas pretas intermináveis reluzindo no sol da tarde, ela brigando comigo e rindo ao mesmo tempo, que eu era um palhaço desde bebezinho, ficava meio carcando a perna dela sem entender o que tava fazendo. Ela era brava, às vezes me beliscava com uma cara de ódio, mas era muito carinhosa, também, vivia falando que queria me cheirar e de fato me cheirando, no cabelo, eu vejo das fotos ela sorrindo comigo. Ela me chamava assim quando tava de chamego (“Meu cheiro”). Eu acho que as memórias que eu tenho dela são quase todas inventadas, mas não tem problema. “Tu te lembras do que tu queiras”, já dizia.

Quando eu era bem menino ainda, a gente foi pro Guarujá, uma vez, visitar uma irmã da minha mãe, que eu não chamava de tia porque ela insistia que eu chamasse de Neide. E que, então, pra mim não era minha tia, era só uma mulher chamada Neide. A gente viu lá um show do Luiz Gonzaga, o rei do baião. E ali eu já entendi comigo mesmo que devia ter muitos tipos de rei. Porque na estrada já tinham falado algumas vezes no rádio dum rei Roberto Carlos, que minha mãe amava, meu pai odiava. Eu não entendi direito as músicas, mas vi que o povo se alegrava e se encoxava direitinho. O que eu mais gostei foi o triângulo, que me falaram que chamava lengo-lengo. Eu ficava impressionado que dava pra ouvir sempre aquele trocinho tilintando no meio da barafunda toda, e só na cadência dele já dava pra ir se quebrando todo. Minha mãe ficava doida com música, dançava pra caramba, até meu pai começar a ficar amuado e ir prum canto, até ele ficar puto e ir lá arrancar ela do meio, o que ela nunca aceitava sem gritar e espernear e xingar ele de tudo quanto é coisa.

Ela cantava muito. Enquanto passava roupa e a vassoura pela casa, mas não só. Cantava uns boleros antigos, alguns em espanhol, a maioria eu nunca nem ouvi em outro canto que não na voz dela. Os sucessos em inglês ela cantava na versão própria dela, ronronada e sem palavras estritas. Ela sabia muita música, mas mesmo das brasileiras era raro ela saber uma letra inteira, quase sempre tinha uns tchã-nanãs e uns tchu-rurus, que quando criança eu achava que eram palavras normais como as outras, mas umas palavra doida que queriam dizer tudo ao mesmo tempo. Até hoje me dão umas intimação meio mística quando ouço um tchu-ruru.

Desde os doze que eu comecei a sonhar com a mãe direto, direto, e os sonho eram tão fortes que eu comecei a falar pro meu pai que eu tava vendo ela. Eu não sei de verdade se eu achava que eu tava vendo na vida real ou se eu sabia que era sonho, acho que eu não entendia tão bem assim a diferença, não. Quer dizer, entendia e não entendia. Meus sonhos sempre foram muito vívidos. Sei que meu pai foi ficando puto, foi falando pra eu não falar essas besteira, que tinha que respeitar os mortos. Só que eu insistia, falava pra ele que ela tinha falado isso e aquilo, citava as coisa que eu lembrava dela falar, e inventava ainda outra ali na hora, uns discurso maluco todo apaixonado de filme que aposto que não devia ter nada a ver com ela. Ele ficava triste pra caralho, dava pra ver, ia ficando mais puto ainda,
me batia preu parar de falar, e eu não parava. Ele batia já chorando, tinha vez que ele pedia desculpa por me bater enquanto batia ainda.

Gente doida, doida assim na família, antes de mim, teve só minha vó, só. Que eu lembre e saiba. Ela sempre foi engraçada, bebia muito, lia livro de ficção científica que pegava emprestado de um médico com quem ela tinha trabalhado de recepcionista. Depois dela enviuvar e minha mãe morrer dois anos depois,  foi meio desistindo de ser normal. Ficava sempre de sutiã e toalha na janela de casa e gritava com quem reclamasse, falando que ela morava no Piauí e que ninguém devia usar roupa no Piauí.

As viúvas da região visitaram ela, chamaram pro grupo de reza que elas tinham, ela respondia que elas não tinham perdido a filha, que nem sabiam o que era dor, que perder o marido era bom, que aquele negócio de ficar de preto não era com ela não.

— O que eu quero saber é quando que o Espírito Santo vai vir me carcar. Alguém tem que mostrar serviço aqui.

As senhorinhas nem respondiam, se acumulavam exasperadas num canto. Ela olhava pra mim ou pra qualquer um que estivesse por perto com a cara sacana de quem não precisava da confirmação que parecia pedir:

— É ou não é?

Morreu aos oitenta e nove, dois anos depois da minha mãe. Lembro dela na manhã que acordou morta, toda encolhida na cama, dura, feito um feto de novo.

Meu pai fez de tudo, foi garçom, foi motorista, mas depois da minha morrer, ele não segurava trabalho, só bebia e trabalhava numa mina de opala sem carteira, solto. Mina do Boi Morto foi a que ele ficou mais tempo. Ganhava muito mal, trabalho agoniante e perigoso do caralho, só quando achava uma pedra maiorzinha é que valia a pena. Mas era difícil acontecer. Ele me ensinou que a pedra que valia mesmo era a que tinha foguinho dentro. A segunda pedra maior que ele achou foi a que deu a maior bolada, quase dez mil reais. Mas essa ele não encontrou na mina em que ele trabalhava. Ele foi dos primeiros que perceberam que ainda tinha pedaços de opala abandonados no vasto rejeito das mineradoras dos anos oitenta, que tinham devassado primeiro aquilo ali tudo. Foi tudo feito tão na tora, com uns método tão zoado, que eles nem perceberam na época o tanto de pedra que eles perdiam. Além das várias que eles destruíram com picareta. Uns amigos do meu pai que tinham trabalhado nessa época encontraram uns pedacinhos, um dia que tavam andando por um dos valões onde tinham jogado o rejeito.

Eles tentaram ser discretos com aquilo, a princípio. Mas foi só um deles, o Rinaldo, achar uma pepita maiorzinha que a história espalhou. Tava na boca de todo mundo das antigas, de repente. Que no lixão todinho tinha opala. Alguns diziam que o rejeito era tóxico, que eles não deviam estar revirando aquilo com tão pouca ou nenhuma proteção. Como tavam, a maioria. Mas nisso se pensava depois, não quando qualquer um ali podia se dar bem nas próximas horas. A história cautelar que todo mundo na cidade contava para todo estrangeiro, anos depois, e para eles mesmos quando bebiam, não era de ninguém que ficou doente. Era do seu Mundote, que já era velho quando Renato era menininho, e que além da cara de maracujá de gaveta tinha uma expressão permanentemente contrita, mesmo quando sóbrio. Seu Mundote tinha achado a maior opala já encontrada no mundo, de quatro quilos e tanto, que hoje tá no British Museum. E ele nunca levou grana nenhuma. Os dois canadenses, que se disseram de uma instituição geológica, deram um calote. E pronto. Todo mundo contava isso com uma cara séria, batendo na madeira e se benzendo depois.

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