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“Really, universally, relations stop nowhere, and the exquisite problem of the artist is eternally but to draw, by a geometry of his own, the circle within which they shall happily appear to do so.”

(Henry James)

“Esto en mis afectos hallo,
y más, que explicar no sé;
mas tú, de lo que callé,
inferirás lo que callo.”

(Juana Inês de la Cruz)

(*)

Piramidal, funesta, a massa de arranha-céus embrenha suas antenas no cinza-rosa penumbrento do céu. Um prédio enorme perto do centro de São Paulo. Eu estou aqui, pernas cruzadas no chão do apartamento ainda sem móveis, o notebook pesado esquentando meu colo. O sol se esparramou com força no outro lado da sala na parede e no chão, recortado pela esquadria e pelos volumes lá fora, antes de morrer com a tarde. Fico longe dele, no meu canto, o fio teso do computador vindo da única tomada da sala que funciona, mambembe no seu buraco arregaçado e descamado de tinta.

É um cômodo só, e abafado. Todo caindo aos pedaços. Mas me parece um reino enorme.

Acabei de chegar e apesar de não ter nada ali além de poeira assentada e recortes fantasmas dos móveis anteriores, sei que vou dormir aqui, usando minha mochila de travesseiro. Tenho 35 anos e acabei de sair da casa dos meus pais no Cruzeiro Velho, no DF, onde eu morava com eles e com minha vó desde que eu nasci. Talvez seja a primeira vez na minha vida que durmo sem mais ninguém num apartamento. Começo a escrever isso quase imediatamente depois de chegar e fumar um cigarro na janela. E é estranho, porque eu não sou uma pessoa que escreve, e a princípio não sei nem porque estou fazendo isso, qual é o tom. Antes de terminar de digitar esta frase percebo que eu sei sim, muito bem, porque estou escrevendo.
É que aconteceu anos atrás um drama envolvendo pessoas que eu conheço, em Brasília. Nada muito além do banal, mas conseguiu me envolver e consumir completamente durante o período, e meio que até hoje. Não só a mim, acho. Todo mundo que tava dentro ou perto ainda tá vivendo sob a sombra comprida que esse troço projeta. E eu quero contá-lo como quem comete um exorcismo, para que ele faça sentido de uma vez e vá embora.

Eu não participei tão de perto desse drama. Toda a minha vida eu cumpri mais um papel de quem observa do que de quem age, digamos assim. A pessoa que fica no canto da sala tentando ouvir todas as conversas, seguindo o conselho de ser alguém em quem nada se perde, aspirando à onisciência de uma porra duma romancista inglesa do século XIX, tentando funcionar como um canal adequado para o que calhar de se montar no seu curso.

Seria desonesto negar que eu tou tomando um cuidado enorme com o jeito que falo. Não sei porque que eu preciso empostar essa voz, que não é, nem de longe, minha. Não é assim que eu falo quando estou só. Quando estou só eu faço muito mais barulho do que sentido. Ainda mais sentido sucedido, assim. A + B.

Eu tou tentando falar como vocês falam. Então pra rolar tem que ser com esse arremedo de voz, aqui. Esse trem. Queria falar de outro jeito, mas já tou vendo que não vou conseguir fazer isso aqui sem ela. É ela que me puxa agora como se pelo proverbial cabelo ou gola.

E eu preciso fazer isso aqui. Por mais que não pareça (e com certeza não parece). É uma questão de necessidade.

Então oi.