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Tasso foi cremado num lugar longe, fora do DF, já no Goiás e não houve uma cerimônia. Ele deixou instruções explícitas que proibiam, na verdade, para desolação da sua viúva. Quando Murilo foi visitar a avó com a mãe descobriu que a biblioteca inteira do avô tinha sido vendida para um sebo. Ela não quis ficar com aqueles livros atravancando a casa e lembrando ele. Só tinha restado uma caixa de leite com os livros que tinham ficado no quarto dele e que ela não sabia dizer se eram livros importantes ou só livros que estavam num canto e não em outro. Esses, pelo menos, Murilo levou pra casa.

Começou a folhear todos naquela mesma noite, consciente da presença teimosa e pesada no seu quarto daqueles pequenos tijolinhos de consciência que ele não entendia ainda. Murilo se sentia muito incomodado – intimidado talvez seja a melhor palavra – com a existência de tanto falatório histórico a respeito de tudo no mundo. E que ele não dominasse aquilo, não tivesse aquilo organizado em gavetas na sua cabeça para poder recuperar e iluminar tudo direitinho. Pelo menos em parte o sentimento de se sentir excluído de algum jogo que outros jogavam era de raiva. Dos doze livros, cinco tinham nomes incompreensíveis, metade pareciam ser romances (que Murilo já sabia que queria dizer historinha). Só um deles tinha figuras. Chamava “Gargântua e Pantagruel”. Foi, portanto, o que Murilo tentou ler primeiro, decidindo que leria do início até o fim mesmo se não entendesse nada. Passaria os olhos e engoliria todas as frases, uma após a outra, até acabar. Mesmo se demorasse anos.

A partir dos treze, quatorze, Murilo vivia tentando imaginar a extensão toda da cadeia comprida que havia levado aqueles livros até ali. Documentos materiais de realidades distantes dele, editoras em Belo Horizonte e Edimburgo, em Petrópolis e Nova Délhi, cuja existência depende da contínua manutenção de um complexo enorme de corpos e cabeças e que por um acaso tinham como de repente voltar à vida ali no quarto dele na 708 sul, na casa estourada de sol, tocando rádio na área de serviço, a mãe vagamente murmurando mais ou menos um terço das músicas, um cachorro latindo lá fora, envolvida mais distantemente por um cerrado tão esparso.

Todo o Império Romano, a colonização européia das Américas, o tráfico de escravos africanos no Atlântico e a expansão da modernidade num processo de sincronização global progressiva culminando naquela caixa de leite com doze livros dentro e um garoto que fala uma língua latina tentando entender que merda era aquela.

Era como se todo aquele somatório de textos estivesse acontecendo dentro da cabeça do avô (por sua vez hospedada, claro, agora, na do Murilo). Ele começava a sentir que habitava aquele troço todo, ainda que ali do seu quarto, sozinho, fingindo que tinha que ir no banheiro às vezes pra poder ler sem que sua mãe passasse de vez em quando e olhasse com uma cara engraçada. Ou ligando o rádio fora de qualquer sintonia no seu quarto só para fazer um ruído branco que competisse com o ruído da televisão na sala e permitisse que ele prestasse atenção num parágrafo espinhudo por mais tempo.

Murilo às vezes encarava a dificuldade dos livros como estivesse se empoderando dela, como num jogo. Se, ao retomar sozinho todos aqueles registros dispersos e transformá-los num todo, ele estivesse deglutindo todo aquele povo morto. A partir dos quinze, começou a ter sonhos recorrentes onde lia um livro do Rabelais sobre uma figura essencialmente parecida com ele, um gigante gordinho e criança versão tropical — figurado de uma forma ofensivamente etnocêntrica — engolindo São Tomás de Aquino, Maimônides, Averróis e Avicena, que em sua maioria se revelavam muito compreensivos com a situação, e tornando-se um monstrão agitado todo explodido de um gás que eventualmente destrói o mundo e, portanto, o sonho de Murilo, numa mesma conflagração. Não era um sonho agradável, embora Murilo tenha rido quando acordou.

Era uma sensação estranha de assombro com a própria imaginação, por mais que ela só se expressasse na época em rascunhos chochos de contos que ele fazia em cadernos. A maioria tão ruinzinhos que ele jamais tornava a ler de novo. Não entendia como podia sentir assombro com sua própria imaginação sem jamais ter inventado nada, mas a sensação era essa e parecia ter se montado sem a sua supervisão. Já estava instalado ali, nele, essa mania de pensar na sua vida toda como um engenho que aprendia a se redobrar sobre si mesmo. Não dá nem pra dizer, no caso dele, que o resto da vida era combustível para uma obra que viria um dia. Porque com Murilo não haveria “resto da vida”. Ele já tinha certeza. Tinha quatorze pra quinze anos, a expressão compungida de santos em pinturas, de estadistas em fotos. Seu rosto foi tomado por espinhas bem por essa época e o que era até então, ao que ele se lembra, apenas um desábito social e uma dificuldade de lidar com a extroversão pavoneada das outras pessoas se aprofundou com força, cavou trincheiras e distribuiu arame farpado, foi aos poucos se endurecendo em algo muito mais espinhudo e próprio, sem esperança nem distante e nem mais desejo, exatamente, de tentar trafegar na normalidade. Murilo havia tentado por uma caralhada de anos ser normal e nada de bom havia saído daquilo.

Ele não mais trocava palavras com ninguém na escola. Os poucos amigos distantes com quem ele às vezes acontecia de conversar sobre ficção científica ou desenhos animados aos poucos foram fingindo que não o conheciam ou mudando de sala. Ele tinha perfeita consciência da figura que ele tinha assumido principalmente por distração e preguiça, de alguém patologicamente distante de convívio social, intratável e esquisito. Ele se achava diferente dos outros esquisitões que via na escola, achava que talvez com esforço ele conseguiria emular as convenções todas que permitia que as pessoas interagissem e tivessem relações umas com as outras. Mas ele não conseguia se importar tanto, não via ninguém que lhe interessasse o bastante para motivar um movimento tão largo, um esforço tão profundo. Cada vez mais ele se ressentia das pessoas. Parte dele gostava da distância que recebia, que chegava a se parecer com respeito, às vezes (do jeito que um doido é respeitado como alguém que habita outro domínio, que vive em outro campo de interações).

Não é como se ele não tivesse amigo nenhum. Na internet Murilo conversava no ICQ e no mIRC todo dia e com gente de todo canto. Tinha dezenas de conhecidos estrangeiros com quem ele conversava em inglês, quase sempre (às vezes num portunhol safado), artistas, professores universitários, estudantes, uma policial canadense ruiva e um travesti mexicano que escrevia sobre cinema, todos se divertindo muito com aquela voz culta e inquisitiva brasileira que parecia se interessar por tudo e que ninguém acreditava que só tinha dezesseis anos.

Estranhava muito ter aquelas relações tão pontiagudas, detidas e específicas com a caixa que era aquele monitor ali no seu quarto sem que seu pai e sua mãe nem imaginassem. Às vezes se sentia culpado, tentava contar pra mãe de tarde algumas coisas que ele estava vendo, mas não conseguia se fazer entender, ela rapidamente fechava a cara de um jeito tão pouco convidativo que dava impressão que ela não tava nem começando a digerir o que ele tava dizendo. Até suspeitava que ela talvez não acreditasse naquilo que dizia, que ele realmente conversava com aquelas pessoas toda, lia sobre aqueles assuntos todos. Quando Murilo por alguma razão comentava algo que via no jornal ou que tava em alguma das duas revistas semanais que eles assinavam daquela semana (que ele lia no banheiro, e só no banheiro), a sua mãe sempre parecia estranhar o que ele dizia.

— Essa menina que escreveu a resenha pro filme parece não entender que a lógica do mercado no qual esse filme está inserido não é de produzir filmes bons, muito menos originais. É uma indústria que reproduz algoritmos bem fixos na busca de maximizar retornos. Ninguém ali acha que é arte e o filme não deveria nem ser resenhado dessa forma.

A mãe olhava pra ele por um tempo com as sobrancelhas franzidas e uma expressão de quem não estava prestando atenção. Mas continuava olhando, como se esperasse por mais informações, ou tentasse escolher pelo menos uma maneira educada de resolver sua expressão.

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