37.

“A vida normalizara-se naquela anormalidade”

Euclides da Cunha

“Um carnaval de verdade, hospitaleira amizade, brutalidade, jardim”

Torquato Neto

Uma das minhas memórias mais vívidas de infância foi de uma viagem pra Guarapari. Eu tinha seis anos. Férias de janeiro, a família inteira da minha mãe apertada numa casa grande (mas não o bastante), alugada pelo tio mais endinheirado que pouco tempo depois acabou se separando da minha tia e, pra todos os efeitos, no que me toca, sumindo do firmamento.

O terreno não era enorme, mas como ficava num declive a casa tinha três andares. Eu nunca tinha entrado numa casa de três andares antes, pareceu um palácio (não era). Dormia no andar mais de cima com vários primos, um bando de colchão estirado no chão, minha prima mais velha falando besteira pra assustar os gêmeos ranhentos, que eram os mais novinhos. Lembro de estar com as pernas recolhidas meio dormitando na poltrona baixinha verde-escura, cujo estofado esburacado desdobrava e virava cama e que era ocupada de noite pela prima mais velha, Luana (a única pessoa bonita já parida pela minha família), e que me parecia infinitamente mais confortável que o meu colchão muxibento, folheando pela décima vez um Almanação de Férias da Turma da Mônica todo rabiscado por um primo meu de tendência grafomaníaca. Eu não sabia ler direito, ainda, e as histórias e brincadeiras ainda estavam todas travestidas com palavrões, rabiscos, o Cascão com tapa-olho de pirata fumando um beque, a Mônica de bigode e um pinto enorme com língua de cobra saindo da sainha vermelha. Tinha voltado mais cedo da praia com uma tia que, como eu, tinha tolerância curta praquele negócio de ficar o dia inteiro tostando na areia e que ficava na mesa da cozinha jogando Palavras Cruzadas e conversando com a programação diurna da televisão. A minha expectativa era de que todo mundo voltasse uma ou duas horas depois, quem sabe encadeassem alguma brincadeira noturna mais divertida ou mais quieta (meus momentos favoritos na viagem eram os dias em que chovia, os tios ficavam jogando baralho e os primos brincando de adedonha ou gato-mia), mas o tempo foi passando e ninguém chegou, acabei adormecendo na poltrona.

Fui acordar horas depois, as costas doendo da posição troncha, um tanto de baba empoçada na revista, o dia já anoitecido, minha barriga roncando. Desci as escadas e o jornal na televisão tocava para ninguém na cozinha. Achei estranho a casa ainda estar vazia e depois de perambular pelo andar de baixo fui enfrentar o resto do condomínio, que além de umas seis casas tinha uma piscina com churrasqueira. Lá encontrei todo mundo, os primos todos jogando pebolim dentro da casinha, investidos das rivalidades que tinham acabado de criar, meus tios e meus pais todos bêbados na piscina. Tinha uma mesinha de plástico dessas brancas com garrafas de cerveja o bastante pra fazer um triângulo de pinos de boliche. Eu nunca tinha visto minha mãe tão bêbada, acho, até então, e lá tava ela terminando um copo no gute-gute e fazendo uma dança destrambelhada, antes de cair com os ombros moles num canto da piscina onde meu pai tava fumando um cigarro, os braços estendidos no chão, todo derretido, rindo pra caralho.

Eu era uma criança sensível, hoje em dia eu sei. Frágil demais. Não tinha nada demais na cena, eles só tavam alegres. Aquela foi uma das melhores épocas para a minha família, de grana e de tudo mais. Depois tudo ruiu pra eles. Mas por algum motivo, que até hoje é difícil pra mim precisar, a coisa toda me angustiou muito. Ver que a minha família não precisava de mim. Fiquei um tempo olhando de longe, minha figura escondida pelo escuro e por uma linha baixa de arbustos. Que eu podia ficar lá dormindo o resto da vida numa poltrona dobrada e mofada, empoçando baba em corredores internos, e eles continuaram ali, fumando e bebendo, jogando pebolim, gritando conjuntamente que a vida é bonita, é bonita e é bonita.