“Eu uso o poder, eu sou o poder”
Roberto Marinho 

“Daí que fizeram a cara da terra escurecer, e caiu uma chuva espessa-escura, uma que caiu dia e noite, os pequenos e grandes animais apareceram, suas caras foram esmagadas por pedras e árvores. Tudo falava. Eles foram interpelados por todos seus moedores, suas panelas, seus pratos e potes.

Quantas coisas tivessem, todas esmagaram seus rostos. Seus cachorros e perus falaram para eles: Dor vocês nos causaram. Vocês nos comeram. Agora somos nós que vamos te comer”. 
O Popol Vuh 

“Exu mata um pássaro ontem com uma pedra que jogou hoje”
Mitologia iorubá 


01.

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Abre em eu mesmo moarzinha acordando numa rede pendurada entre duas palmeiras que sobem pra sempre, terminando só na explosão contínua do sol, sou carregado por pássaros de diversa morfologia e cantoria contrapontística lombrada até uma espécie de carrinho de montanha-russa montando em trilhos etéreos, onde encontro Os Tincoãs, com os quais entro em imediata e sobreposta harmonia.

Cantamos Deixa a gira girar navegando em nuvens de sucessão extremamente proveitosa, segmentada e fluida. Subentende-se que todos temos superpoderes. Toca em seguida nas redondezas das nuvens uma versão hip-hop de Que a Natureza é Um Fogo Heracliteano e Do Conforto da Ressureição, o gravão estouradaço, a voz que canta anasalada como a do Kanye, mas com sotaque indiano. O precursor sombrio espreita, vibrando mais rápido do que tudo, pipocando aqui e ali. A matriz desce tentando recortar tudo, como uma malha. Transito por cores e deformações diversas até canalizar ou culminar num ponto luminoso que reúne seus feixes num brilho de som de raio leise, num efeito sonoro digital que instintivamente dato do final dos anos oitenta.

Aí acorda o meu corpo infelizmente humano desenxabido suado dormindo e de menos meia perna (a direita) num grande pufe dotado de edredons e lençóis fedidos diversos enrolados uns nos outros (um deles promovendo o desenho animado DuckTales, outro, o Clube Atlético Mineiro), espreguiça-se de forma dispendiosa, demorada, cada articulação volteando seus dotes expressivos, a cara sonada vai se repuxando em bocejos compreensivos até assumir uma postura desativada de quem está inicializando.

Começa de novo o filme, eu falo, e levanto num único ímpeto desembestado girando em volta dum eixo subitamente erguido entre meu pé e a bacia. O esculacho. Eu quase caio, seguro num troço.

Que preguiça, continuo, já de pé, todo encolhido, ainda bocejando. E de uma vez me veio tudo de cabuloso que aquele dia invocava e prometia. Todos os esforços cumulados do espírito que se aglutinavam para sua necessária dissolução figuravam diante do meu nariz, em toda sua aparatosa trambolhosidade.

Hoje é oito do sete de dois mil e quatorze.

Eu fungo, rio. Muita treta pra tretar, ainda, gira pra girar. Dá um tremelique na espinha que eu deixo ressoar inteiro até os pés. Vazei da casa da Tamires de madrugada, noiado pra caramba, depois da voz da outra ficar soando na minha cabeça daquele jeito. Tá doido. Queria distância daquela máquina. Eu sei que alguma coisa sinistra vai rolar hoje no jogo e eu precisava de pensar direito, com clareza.
O que é que ela vai fazer? E por que que ela quer que eu fique no jogo hoje? Penso nos meus amigos e conhecidos que morreram assassinados nos últimos meses. A sensação estranha de que eu era o que todos ali tinham em comum. Sei que ela não tá por trás disso, mas as coincidências assustam.
Toco no meu cocuruto e na nuca e sinto o papel-alumínio ainda mais ou menos amoldado ao pescoço suado. Aperto ele contra mim mesmo para deixá-lo mais fixo, renovo as duas tiras de fita-crepe que mantêm ele no lugar.

Foi tanta correria nos últimos dias que eu só lembro direitinho onde estou depois de uns segundos da memória dando boot. A casa não é minha, é de uma amiga que não tá morando aqui e que eu sei que deixa a chave na samambaia na porta. Tetesa querida, a Teresa. É bióloga e no momento deve estar caçando fungo no mato. Ela não sabe exatamente que eu viria aqui, mas só fiz comer dois ovos e usei um dedinho de pasta de dente. E ainda fiz foi molhar as plantas e deixar um desenho no quadrinho de giz dela. Todo mundo ganha. Pego a minha mochila cinza descascada com uma muda de roupa suja, desligo e fecho tudo, deixo a chave onde a encontrei e saio pra rua. Nas obras ali as bocas de ferro mexendo, schrau, schrau. Tá doido. Bê Agá e a sua quietude própria de tios aposentados nos bares, olhando, barrigudos, algumas tias nas janelas. Nove e tanto. Saudade demais disso aqui que andava há muito solta e longe, e agora eu preencho de novo duma vez, meu coração implodido daquilo se retroalimentando. Demora muito pra começar a me engrenar os dentes aqui dentro de modo que eu situe de novo a merda em que eu tou metido.

Conto os trocados e antes de qualquer coisa vou no automático pra padaria, tomar uma média. Já tinha tido uma sorte do caçamba de conseguir lugar pra ficar ontem, agora penso quem mais que eu conhecia em BH e lembro de cara do Milton, que eu não via tinha anos. Das melhores pessoas que já andaram em duas pernas, e das mais imbecis também, e maravilhosas. Fechei meus olhos com força pra ver se ainda lembrava do número inteiro dele, e lembrei. Do jeito que ele era, a chance de ele ter voluntariamente mudado era quase zero.

— Opa.

— Fala, Milto-Milto, o mito em carne viva. O homem, a lenda, a linha de colônias e desodorantes.

— Quem é?

— Como “quem é”? Não tá me conhecendo, não, seu rola-bosta? Seu melhor amigo, amor da sua vida.

— …

— Tá gagá já, hein, Milto? Isso é a farinha toda, é? Já aposentou o neuro e o ônio?

— Renato?

— Aêêê.

— Puta que pariu, tu tá vivo, tua desgraça? Puta que pariu.

— Não só tou vivo como tou na sua própria cidade-city, bê-agância, comé que é? Nem fala que cê vai trabalhar hoje, que eu sei que é mentira. Não são nem dez da manhã ainda, e hoje tem jogo do Brasil. Não quer vir me buscar? Tava precisando duma carona e dum ombro amigo, serião.

— Tu é muito cara de pau, Renato.

— Eu nunca falei que não era.

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